O que o MAL pode nos dizer sobre o público dos animes
No começo da temporada de primavera 2019, eu vi muita gente falando que seria a pior temporada em muito tempo, que não tinha absolutamente nada de interessante pra assistir e que era a temporada de assistir coisas antigas. Eu fiquei um pouco intrigado por essa posição e comecei a pensar se isso era mesmo verdade.
Algumas horas depois, eu havia puxado informações sobre todos os animes do MAL lançados entre 2000 e 2018. Eu vou publicar o resultado completo, o banco de dados e o código utilizado na análise em breve, mas descrevo abaixo alguns resultados preliminares. Eu concentrei minha análise em dois fatores: "popularidade", medida através do número de membros do anime, e "qualidade", medida através da média de votos recebida pela série.
Um disclaimer: toda e qualquer informação abaixo precisa ser levada com uma pitada de sal. O público do MAL não é representativo do público geral que é fã de anime. O fã médio de Dragon Ball Super não faz conta no MAL. Essa é uma análise do público um pouco mais entusiasta do anime, e essa distinção será importante em alguns aspectos. Além disso, o público do MAL é majoritariamente ocidental - e a indústria de anime ainda tem os olhos voltados principalmente para o mercado interno. Por fim, quando eu me refiro a "qualidade", entendam como qualidade subjetiva e percebida pelo público do MAL, e não qualidade objetiva (muito mais difícil de mensurar).
O melhor ano do anime das duas últimas décadas foi 2008
É sabido que a quantidade anual de séries de anime lançadas nas últimas duas décadas tem aumentado consideravelmente ano a ano. O gráfico abaixo compara a média de "popularidade" e "qualidade" de cada ano:
O número de séries saltou de 224 no ano 2000 para 632 em 2016, quase triplicando o mercado. Comparativamente, a popularidade média de cada anime saltou de 16 mil em 2001 para 59 mil em 2012, quase quadruplicando. A popularidade do anime começou a crescer bem antes da explosão do mercado, devido à facilidade do acesso via internet e à proliferação dos fansubs. A partir de 2006, quando a Crunchyroll, a Funimation e outros serviços do gênero começam a tomar força e puxar o mercado internacional de animes, o número de produções acompanha e sobe gradativamente.
Contudo, a qualidade dessas séries não conseguiu acompanhar todo o crescimento, tendo um pico de 6.98 de média em 2008 e depois estabilizando entre 6.7 e 6.75 nos anos seguintes. Isso possivelmente está ligado aos cronogramas exigentes dos estúdios de animação, fruto de uma demanda imensa por obras que não consegue ser suprida pela mão-de-obra atual.
2008 foi o ano de lançamento de Clannad: After Story, Code Geass R2, Natsume's Book of Friends, Toradora! e Spice and Wolf.
O poder do "seinen psicológico"
Outra coisa que analisei foram os gêneros. Cada série pode ser "rotulada" com um ou mais gêneros, a critério da comunidade. O MAL estabelece um total de 43 gêneros diferentes para classificar as séries. Confira o gráfico abaixo:
Os gêneros de comédia, ação e drama são os mais comuns, mas também os mais genéricos. Praticamente todo anime pode ser considerado um anime de comédia, ação ou drama. Os menos representados são os gêneros Shoujo Ai, Shounen Ai, Yaoi e Yuri. Shounen está no top 10, assim como Hentai.
Na medição de popularidade, já vemos algo interessante: o topo é dominado por gêneros "sérios", como Thriller, Psychological e Mystery. Shounen, que é indubitavelmente o gênero mais popular do mundo, fica atrás de Horror na métrica de "popularidade". Hentai, um dos dez gêneros mais produzidos de anime, está na última posição de popularidade: um sinal de que muito hentai está sendo produzido, mas pouca gente está assistindo (ou admitindo que assistiu em sua conta pessoal no MAL).
Em questão de qualidade, é interessante ressaltar que os gêneros Shoujo Ai e Shounen Ai, embora tenham títulos escassos e pouco conhecidos, geralmente são bem-avaliados por quem assistiu, indicando que existe um nicho grande a ser explorado dessas obras. Não é o caso de Yaoi e Yuri, que estão junto com Hentai na lanterninha das avaliações. Aparentemente, quem admite ter assistido Hentai logo diz que não gostou nem um pouco.
Contrariando expectativas
Se me perguntassem um mês atrás qual é o tipo de anime que mais tem chance de ter uma boa qualidade, eu diria que é o anime original. Enquanto animes adaptados de mangás e novels muitas vezes são utilizados como mera ferramenta de marketing para impulsionar as vendas de outro produto, animes originais só podem confiar em si mesmo para serem rentáveis, e exigem mais comprometimento e risco da produção.
Eu estaria errado.
Para realizar esta análise, eu modifiquei levemente o campo "Source" do MAL. O estudo completo entra mais em detalhes, mas a ideia geral é reduzir os 16 diferentes tipos de origem em 8, agrupando alguns com menor presença.
Os animes mais populares do MAL são baseados em light novels, seguido de mangás, livros em geral e do resto. Animes originais são em média tão populares quanto animes baseados em jogos de videogame ou VNs. A explicação é que produções experimentais, séries curtas e principalmente obras infantis costumam ser séries originais, o que puxa para baixo a popularidade e a qualidade percebida delas.
É interessante perceber como o perfil da origem dos animes mudou nas últimas duas décadas:
Em 2001, 40% dos animes lançados foram baseados em alguma Visual Novel. VNs são geralmente mal-avaliadas e impopulares porque uma parcela grande delas são consideradas hentai. Coincidência ou não, 2001 marca o lançamento do anime da VN Bible Black. Com o passar dos anos, a parcela de animes baseados em VNs diminuiu,
É também interessante notar que, embora existam poucos animes baseados em livros normais, os poucos que existem costumam ser muito bem recebidos. Animes populares baseados em livros incluem O Castelo Animado, Paprika e Run with the Wind. Contudo, é difícil determinar o que distingue um livro de uma light novel para os padrões do MAL, ainda que eles sejam estatisticamente distintos.
O tamanho certo
A televisão ainda é um dos canais de faturamento mais importantes da indústria do anime. E como os canais não podem ter buracos em sua programação, eles estão constantemente em busca de produzir novas séries para preencher o espaço das que acabam. Para facilitar as negociações e para dar um pouco mais de alavancagem para os comitês de produção, a maioria das séries começa e termina mais ou menos na mesma época, numa troca que acontece trimestralmente. Daí vem o costume de agregar as séries em temporadas, de nomeá-las com as estações do ano, e de medir a duração das séries em cour (derivado do francês cours, que significa período). Um cour equivale a 3 meses de duração da série, entre 12-13 episódios. Abaixo você pode ver a distribuição de séries de acordo com sua duração, no período entre 2000-2018:
Para fazer essa divisão, eu estabeleci o seguinte critério: "One-Offs" incluem filmes, especiais, OVAs únicos - tudo que existe no MAL e que possui apenas um "episódio". "Shorts/OVAs" corresponde a todas as séries que possuem até 6 episódios, incluindo séries canceladas, trilogias de filmes, enfim. Daí em diante, eu encaixei a série na categoria que mais faz sentido. Para esta categoria, eu não fiz distinção entre filmes, OVAs e séries de TV - a maioria dos filmes e OVAs vão cair nas categorias acima.
Hoje em dia, a duração da maioria das séries é de apenas um cour, mas não foi sempre assim. Nos anos 70 e 80, era bem comum ver séries com 3 cours ou mais, e a maioria das séries dessa época que se tornaram clássicos têm várias dezenas de episódios. Mas o mercado foi mudando, em parte devido à crise que se abateu na indústria de anime nos anos 90, em parte devido às mudanças culturais - a TV perdeu relevância comparado à internet, que oferece acesso a séries antigas e novas e a uma variedade de entretenimento muito maior. À medida que a competição aumentou, aumentaram também os riscos - e apostar em séries de 1 ou 2 cours foi se tornando uma maneira de minimizar o risco do investimento. Acompanhe a evolução da duração média das séries ao longo dos anos:
Importante notar que o MAL contém uma entrada para cada temporada distinta de uma série, então uma série como Chihayafuru vai constar como duas entradas de 2 cour, ao invés de uma entrada de 4 cour. Mas e quanto à qualidade/popularidade de cada categoria?
Séries de 2 cours costumam ser mais populares e bem-avaliadas do que séries de 1 cour, mas isso não significa que mais episódios os torna melhor. Como eu disse, para um projeto ser aprovado com 2 cours ou mais, ele precisa ser uma aposta mais confiável - e os resultados mostram que os comitês de produção têm alguma capacidade de estimar esse risco.
"Mas se é preciso ser uma aposta mais segura para conseguir mais episódios, as séries de 3+ cours deveriam ser ainda melhores!" Verdade, Verdade, mas a partir do terceiro cour, a maioria das séries começa a ter retorno diminuído - o público começa a se cansar e largar no meio, e as chances de tomar uma decisão criativa que afaste os fãs aumenta. Além disso, em geral, quanto maior a série, menor a chance que ela vá ser pega por um fã casual para assistir. Esses efeitos são bem conhecidos pela Netflix, que sabidamente cancela shows após a segunda ou terceira temporada por motivos similares, mesmo quando são séries de sucesso.
Outro motivo é que as séries de 3+ cours incluem muitas séries voltadas ao público infantil (Bono Bono, Shounen Ashibe! Go Go Goma-chan), além de séries com intuito puramente promocional (Cardfight! Vanguard, Beyblade, Shinkalion). Embora elas sejam rentáveis por possuirem um público cativo na TV japonesa e darem retorno de vendas em merchandising, é de se esperar que nenhuma dessas séries sejam bem recebida pelo público otaku hardcore. O que é um ótimo segway para o próximo assunto:
Nem infantil demais, nem "adulto" demais
Tem uma última informação que podemos extrair do MAL, que é a classificação etária. Não sei dizer até que ponto ela é oficial ou não, mas dado que ele usa o sistema americano de classificação de filmes, é seguro dizer que é uma recomendação não-oficial dos membros da plataforma. Contudo, ela fornece uma ideia geral do conteúdo da série. Ela tem bastante em comum com a tag de gêneros, mas séries podem possuir vários gêneros, o que acaba misturando um pouco os efeitos. Classificações etárias no MAL são divididas em 6 categorias - aqui está uma breve descrição de cada uma delas, assim como alguns dos títulos mais bem-avaliados de cada um:
- G: Todas as idades, nenhuma restrição. Ex.: O Castelo Animado, O Conto da Princesa Kaguya, Pingu in the City
- PG: Crianças podem assistir, mas é recomendada a supervisão de um adulto. Ex.: A Viagem de Chihiro, Cardcaptor Sakura, Little Witch Academia (TV)
- PG-13: Pode conter material não indicado para crianças com menos de 13 anos. Ex.: Steins;Gate, Hunter x Hunter, Gintama.
- R-17: Não recomendado para crianças com menos de 17 anos. Geralmente envolve violência gratuita e explícita. Ex.: Fullmetal Alchemist: Brotherhood, Made in Abyss, Code Geass
- R+: O mesmo que o R-17, mas com nudez total ou parcial. Ex.: Monster, Nana, Berserk.
- Rx: Tecnicamente pornografia. Todos os títulos nessa categoria têm a tag "hentai", então já sabe o que esperar.
E esta é a média de popularidade e avaliação de cada classificação:
Como já vimos nos outros tópicos, conteúdo voltado para crianças é muito pouco assistido na comunidade. Embora tenha alguns títulos bem-avaliados, como os blockbusters da Ghibli, a maioria é ignorada ou rejeitada. Hentai também é mal assistido e mal avaliado, como já vimos na seção das tags. As outras classificações são mais interessantes. O público de anime gosta de suas séries com bastante sangue, violência e palavrões, mas não tanto de ecchi e fanservice.
Conclusão?
- Estão saindo mais animes a cada ano, mas isso não afeta a qualidade deles - o público continua gostando deles da mesma forma.
- O público do MAL gosta do seinen adultão: séries com tags Thriller, Psychological e Mystery, com rating R-17.
- O público costuma gostar mais de séries de 2 cours do que séries de 1 cour, mas isso é provavelmente um resultado das estratégias de planejamento dos comitês de produção, que só aprovam séries mais longas quando têm mais confiança no resultado.
- Animes baseados em VNs estão morrendo; Animes baseados em mangá estão praticamente estáveis, mas webcomics e séries 4-koma estão ganhando mais força que mangás tradicionais; Animes baseados em livros e light novels estão crescendo rapidamente.
E a pergunta original? A temporada de primavera 2019 foi mesmo tão ruim?
As 44 séries que o MAL rankeou têm nota média de 6.86, que o coloca acima da média histórica dos últimos dez anos. São sete séries com nota acima de 8.0 (Attack on Titan, Demon Slayer, Ace of the Diamond, Bungo Stray Dogs, Carole & Tuesday, Fruits Basket e a adaptação de TV de GUNDAM THE ORIGIN), além de mais 10 séries com nota acima de 7.0, incluindo surpresas como Hitoribocchi no Marumaru Seikatsu e Sarazanmai. Por isso, eu não acho que a temporada de primavera 2019 foi tão ruim quanto pintavam.
E você? Tem alguma questão sobre o banco de dados do MAL e o que as pessoas estão assistindo? Tem alguma pergunta sobre a análise? Compartilhe conosco nos comentários.