ABAYO FLY BYE: Kokusai Eigasha, a Trilogia J9 e a Revolução Televisionada do mundo dos mecha

A história de um pequeno estúdio de Hokkaido que misturou rock n' roll, literatura, Shinsengumi e seriados de samurai e mudou a história dos animes de mecha para sempre.

ABAYO FLY BYE: Kokusai Eigasha, a Trilogia J9 e a Revolução Televisionada do mundo dos mecha

No começo dos anos 80, um pequeno estúdio de Hokkaido navegou numa revolução crescente e deixou uma marca indelével e indiscutível no zeitgeist da época. Suas obras bebiam de fontes que iam da literatura ocidental a seriados de samurais, e trouxeram o rock n' roll, o Shinsengumi e o lolicon para o mundo do anime. Seus criadores e colaboradores sairiam dali para trabalhar em obras como Final Fantasy, Shenmue, A Viagem de Chihiro, Yu Yu Hakusho e os tokusatsu Super Sentai e Jaspion. Suas inovações influenciaram estúdios como Sunrise e Tatsunoko.

Esta é a história da Kokusai Eigasha e de sua principal obra-prima: a trilogia J9.

Da esquerda pra direita: Baxinger, Bryger e Sasuraiger, os três mechas da Trilogia J9

Overture

Quando Gundam 0079 (1979) estreou nas TVs japonesas, o gênero mecha já estava bem definido e popularizado. Inaugurado em obras como Tetsujin 28-go (1956) e cristalizado no icônico Mazinger Z (1972), suas obras se estabeleceram rapidamente na televisão japonesa, e no Natal de 1976 oito séries diferentes eram exibidas semanalmente nos canais de televisão japoneses, cada uma com seu robô gigante titular.

Mas quantidade não significa variedade. Por mais divertidas que fossem, as obras produzidas nesse período inicial tinham um escopo bastante limitado e seguiam uma fórmula bem similar: um ou mais jovens adolescentes recebiam de uma força maior (geralmente um cientista, muitas vezes ligado ao governo e muitas vezes parente do protagonista) um robô gigante e o pilotam com muita justiça e nekketsu no coração para combater as forças do mal (mutantes, alienígenas, dinossauros e outras raças não-humanas). Havia diversidade nos detalhes da execução, na caracterização dos personagens, nos poderes de cada mecha, nos dramas interpessoais entre os protagonistas - mas todos giravam em torno da mesma temática.

UFO Senshi Daiapolon, uma das várias séries mecha esquecíveis do final de 1976

Como se sabe, Gundam 0079 não fez sucesso imediatamente. Ele afastou boa parte da audiência por romper com vários desses pilares de uma só vez: o mecha principal não é entregue ao jovem adolescente (Amuro Ray), mas sim roubado por ele de uma instalação militar em um ato de desespero. O governo não cede o mecha de bom grado, e tenta em vários momentos forçar Amuro a devolvê-lo. O Gundam titular não é apenas um símbolo de justiça e de heroísmo, mas também o protótipo de uma linha de armas militares, que conta com diversos outros modelos produzidos em massa. Os inimigos não são criaturas sem humanidade com o propósito vazio de dominação mundial - são um grupo de colônias liderados por um clã de humanos que admitem uma série de adjetivos: separatistas, ditadores, fascistas, terroristas, e por aí vai.

Não foi necessariamente a primeira vez que um anime de mecha abordou temas de dilemas morais e os horrores da guerra. O episódio mais famoso de Zambot 3 (1977) envolve homens-bomba e terrorismo; em Mechander Robo (1977), o inimigo desafia os heróis com robôs produzidos em massa e é enfrentado por exércitos militares de todo o planeta. Mas ao ir mais além do que seus antecessores, e ao beber da fonte de sucessos do momento como Star Wars (1977) e do filme-compilação de Patrulha Estelar (Uchuu Senkan Yamato, 1977), Gundam 0079 ganhou um status cult que foi culminar no sucesso de bilheteria de sua própria trilogia de filmes-compilação, lançados entre 1981 e 1982.

Pôsteres da trilogia de filmes de Gundam 0079

Com isso, Gundam 0079 criou uma cisão no gênero mecha, dividindo-o em duas vertentes: os Super Robots, com conceitos espetaculares e cheios de heroísmo e bravura, e os Real Robots, com um pouco mais de pé no chão e buscando uma ciência mais realista na medida do possível. Mas isso não quer dizer que Gundam 0079 não tenha tido impacto no gênero como um todo, e hoje eu quero contar a história de uma trilogia de Super Robots que nunca seria possível sem Amuro Ray e Char Aznable.

A Kokusai Eigasha

Em 1974, Juzo Tsubota, um executivo da indústria cinematográfica, que havia trabalhado em empresas como a produtora Nikkatsu e a distribuidora Dainichi Eihai, decidiu abrir em Nemuro, Hokkaido, sua própria companhia de produção e distribuição de filmes, a Kokusai Eigasha (internacionalmente conhecida como Movie International Co. Ltd., e muitas vezes abreviada como MIC). Eu encontrei pouco sobre a atuação da empresa no começo de sua existência - a Wikipédia comenta sobre a mediação da venda de um dorama da NHK para o Canal 12 de Tóquio, que viria a se tornar a TV Tokyo de hoje em dia.

Em 1979, a Kokusai Eigasha decide entrar no ramo de produção de animes, com Shigeo Tsubota, o filho mais velho de Juzo, atuando como produtor. É uma aposta um tanto arriscada: não há muitos talentos no mercado de animação que não estejam presos a estúdios maiores, e a maioria dos estúdios sempre se concentrou na região metropolitana de Tóquio, bem longe de Hokkaido. Para referência, em 2019, dos 622 estúdios japoneses de animação registrados na AJA, 542 estavam em Tóquio.

Distribuição de estúdios de animação pelo Japão em 2019. 87% dos estúdios ficam em Tóquio.

Como se a disputa por talentos não fosse complicada o bastante, o mercado de animes era uma fração do que temos hoje em dia. O modelo de negócios da indústria do anime sempre dependeu de três pilares principais: estúdios capazes de produzir uma obra de grande apelo; canais de TV dispostos a arcar com a produção na esperança de atrair audiência e faturar com anunciantes; e patrocinadores que ajudam a financiar o empreendimento na esperança de explorar os direitos da obra, vendendo brinquedos, discos, fitas VHS e outros produtos licenciados. Mas na época, as produções eram mais longas e menos numerosas, ocupando os blocos de programação nas TVs japonesas por mais tempo, e aumentando a concorrência entre os estúdios e seus patrocinadores por esses espaços. Entre 2014 e 2018, foram produzidas em média 230 novas obras de animação por ano, mas em 1979, esse número foi de apenas 37.

Por isso, eles formam uma parceria com outra empresa de animação recém-estabelecida em 1975, a Ashi Productions - um estúdio que existe até hoje, e que mudou de nome para Production Reed entre 2009 e 2018 - para a produção de quatro obras, das quais duas eventualmente chegariam ao Brasil. Baldios - Os Guerreiros do Espaço (1980), um anime de mecha com forte mensagem ambientalista, foi cancelado na metade e teve que compilar os episódios finais num filme longa-metragem para concluir o enredo. Esse filme chegou a nós pela TV Manchete, onde foi exibido em formato de minissérie com dublagem dos estúdios Herbert-Richers e distribuição Brasil Home Video (hoje Sato Company). Já As Novas Aventuras de Josefina (1979) é baseado num livro espanhol do mesmo autor de Marcelinho Pão e Vinho, contando a história de um garoto que tem uma baleia de estimação que cabe na palma da mão. Ele foi lançado dublado aqui em VHS com dublagem em português, embora exista pouquíssimo registro na internet sobre a versão brasileira.

Capa do VHS nacional de Baldios - Os Guerreiros do Espaço

Futago no Monchichi (1980), o terceiro título, era uma série de episódios curtos sobre um casal de macaquinhos, que servia principalmente para promover a popular linha de bichinhos de pelúcia deles. O anime não chegou a ser exibido por aqui, mas os brinquedos, sim - os macaquinhos foram lançados pela Estrela por aqui com os nomes de Tiko e Tika. Por fim, Zukkoke Knight - Don de la Mancha (1980) é uma humorosa revisitação do clássico da literatura espanhola que puxa um tanto das séries de comédia que a Tatsunoko Pro produzia na época. Vale pela curiosidade de ver Kenji Utsumi, a imponente e ameaçadora voz de Raoh em Hokuto no Ken (1984), dando vida a um cavaleiro atrapalhado de voz esganiçada.

Não foi um grande começo - assim como Baldios, Josefina também teve sua exibição interrompida na TV por conta da baixa audiência - mas a empresa decidiu continuar com a produção de obras animadas. Algumas fontes apontam como motivo o aparente tino comercial de Shigeo Tsubota, que conseguiu aproveitar um mercado internacional aquecido para distribuir todas essas quatro séries em diversos países das Américas e da Europa ao longo da década de 80. As inúmeras conexões da Kokusai Eigasha, que ainda estava fortemente envolvida na distribuição e comercialização de filmes, certamente ajudaram nesse aspecto.

Um raro exemplar dublado em português d'As Novas Aventuras de Josefina

A partir deste momento, a Kokusai Eigasha passou a encomendar o grosso da animação com estúdios coreanos, como a Daewon Animation, que também fornecia serviços para grandes nomes como a Hanna-Barbera e a Toei Animation. E por falar em Toei Animation (que na época ainda se chamava Toei Douga), ela teve um papel mais que crucial neste período da empresa. Graças a uma aparente amizade entre Juzo Tsubota e Chiaki Imada, presidente da Toei Animation desde 1973, a Kokusai Eigasha teve acesso a vários talentos experientes e renomados, além de toda a estrutura da companhia. Foi a Toei, por exemplo, que distribuiu o filme de Baldios para os cinemas.

Em abril de 1981, foram ao ar na TV duas obras da Kokusai Eigasha. A primeira foi Wakakusa no Yon Shimai (1981), uma adaptação do romance "Little Women" da americana Louise May Alcott, publicado no Brasil com o título "Mulherzinhas". Esta adaptação acabaria sendo esquecida pelo tempo, pois seis anos depois o estúdio Nippon Animation adaptaria a obra novamente para o World Masterpiece Theater, sua série de animes baseados em romances clássicos. A segunda foi Mechakko Dotakon (1981), uma obra original criada pelo diretor Takeshi Shirato sobre um garoto robô que vive se metendo em confusões, com um jeitão que lembra a Arale de cosplay de Jotaro Joestar.

Abertura de Mechakko Dotakon

Os roteiros de Mechakko Dotakon foram escritos por Yu Yamamoto, um roteirista de carreira que era conhecido por ser uma espécie de workaholic, um roteirista extremamente produtivo e sempre envolvido em múltiplos projetos paralelos. Ele participou de inúmeros projetos na Tatsunoko Pro, como Yattaman (1977) e Gatchaman II (1978), além de projetos de vários outros estúdios, com destaque para o próprio Gundam 0079 da Sunrise. Em 1979, ele escreveu um quarto dos roteiros de Gundam 0079 ao mesmo tempo em que escrevia 21 episódios para Zendaman, o Time Bokan daquele ano.

Quando dois executivos da Tatsunoko Pro deixaram a empresa para fundar a Ashi Pro, ele foi chamado para roteirizar mechas como Blocker Gundan IV Machine Blaster (1976) e Chou Gattai Majutsu Robo Ginguiser (1977), na qual ele escreveu sozinho metade dos episódios. Foi através da Ashi Pro que Yu Yamamoto viria a conhecer a Kokusai Eigasha, onde escreveu também os roteiros de Josefina e Don de la Mancha, e logo se tornaria um dos nomes mais importantes da história da empresa.

Yu Yamamoto (Data desconhecida)

Montando o Time

Gundam 0079 quebrou várias barreiras para o gênero de mecha, expandindo o léxico narrativo e abrindo caminho para novas histórias e novas perspectivas. E na minha opinião, sem Gundam, a história dos animes de mecha nunca teria tido o seu diretor mais improvável: um diretor que simplesmente não queria dirigir mechas.

Takao Yotsuji (2020)

Takao Yotsuji entrou na indústria de animação quase a contragosto. Sua intenção ao se formar era produzir filmes live-action, mas ele não encontrava vagas na indústria cinematográfica de jeito nenhum. Acabou por aceitar um emprego na Mushi Productions, produzindo comerciais para TV e trabalhando sob a tutela de Yoshinori Kishimoto, que se tornaria um dos fundadores do estúdio Sunrise, migrando para lá quando a Mushi Pro declarou falência.

Ele continuou fazendo pequenas participações, produzindo, dirigindo episódios e escrevendo roteiros em obras como Robokko Beaton (1976), Zambot 3 (1977) e Voltes V (1977), mas foi despontar como diretor em Kagaku Boukentai Tanser 5 (1979), uma cativante obra que mistura miniaturas com animação 2D sobre um grupo de exploradores que busca desvendar os "3794 mistérios" que existem na Terra. Em seguida, ele dirigiu Sue Cat (1980), sobre uma gatinha desmemoriada e órfã que decide se tornar uma idol famosa no país todo na esperança que seus pais perdidos a reconheçam. Não era um projeto de grande expressão, e certamente fez muito menos sucesso do que Tanser 5, mas ele simplesmente não achava que mechas eram a praia dele, e fugia ativa.

Temas de abertura e encerramento de Tanser 5

Takao Yotsuji veio a conhecer Yu Yamamoto durante a produção de Yuusha Raideen (1975), onde ambos atuaram como roteiristas, e rapidamente se tornaram grandes amigos de bebedeira. Trabalharam juntos novamente em Yattodetaman (1981), o quinto anime da popular série Time Bokan da Tatsunoko Pro. A esta altura, Takao já estava envolvido com a Kokusai Eigasha, fazendo pequenas pontas em Baldios e Mechakko Dotakon, quando Yu Yamamoto o convidou em 1981 para ser o diretor de um novo projeto, a ser financiado pela Takatoku Toys, uma fabricante de brinquedos.

A Takatoku Toys merece um parágrafo à parte. Fundada em 1917, a empresa foi pioneira na fabricação de brinquedos licenciados de séries de TV, lançando bonequinhos de sucesso de séries como Astro Boy e Ultraman nos anos 60. Em 1971, com o sucesso de Kamen Rider, a Takatoku licenciou os direitos de produzir réplicas do Typhoon, o cinto de transformação do herói... e não fez muito sucesso. Era um modelo simples, com uma ventoinha manual e que não parecia muito com o original da série. Um modelo mais avançado, com ventoinha elétrica que girava e tinha luzinhas, começou a ser comercializado pela Popy, uma nova fabricante fundada no mesmo ano por dissidentes da Bandai. Mesmo custando três vezes mais que o modelo da Takatoku, o cinto da Popy foi um estrondoso sucesso, vendendo 3.8 milhões de unidades.

Review do cinto de transformação do Kamen Rider original da Popy, com luzinha e ventoinha

Com o sucesso do produto, a Toei começou a dar preferência à Popy na fabricação de seus brinquedos, colocando a Takatoku numa posição complicada, ainda que ela continuasse a ser a terceira maior fabricante do Japão. Então, nos anos 70, além de produzir brinquedos de sucesso para a franquia Time Bokan e para super robots como Uchuu Majin Daikengo (1979) e Sengoku Majin Goshogun (1981), ela começa também a financiar a produção de séries, em busca de sucessos que possam movimentar sua linha de produtos e manter a empresa de pé - e o sucesso recente dos brinquedos de Gundam 0079 dava bons argumentos a favor da criação de mais séries de robôs.

Quando Yu Yamamoto estendeu o convite a Takao Yotsuji, ele foi bem claro ao dizer que precisava o patrocinador queria uma série de robôs. Ao ouvir a recusa do diretor, o roteirista explicou: "メカが出なくてもいいよ". O mecha não precisa aparecer. Ele sugeriu fazer uma série de super robot... sem o robot. É claro que ia ter um robozão superpoderoso, mas ele não precisava ser o foco da ação.

Yotsuji topou com uma condição: a trilha sonora da série tinha que ser rock n' roll. Yotsuji era um roqueiro inveterado, sabia que era o som que a garotada estava a fim de ouvir, e já havia tentado colocar mais rock em suas obras anteriores, mas nunca teve permissão. Agora, com controle criativo para fazer o que quiser, ninguém poderia impedi-lo. E para criar a trilha sonora, Yotsuji convidou o terceiro elemento que definiria de vez o espírito audacioso da Trilogia J9: o compositor, cantor e dublador Masayuki Yamamoto.

Masayuki Yamamoto

Masayuki Yamamoto (sem parentesco com Yu Yamamoto) é um gênio, um daqueles talentos multifacetados, com obras imediatamente reconhecíveis a qualquer um que conheça seu trabalho. As músicas de Masayuki Yamamoto têm uma energia sem igual, com vozes de fundo que duelam com o cantor, sequências rápidas de trava-línguas e um humor próprio que casa perfeitamente com a proposta da série. Seu primeiro grande destaque em sua carreira foi o hino do time de beisebol Chunichi Dragons, composto logo que se formou na faculdade após ganhar um concurso. Seu principal trabalho foi na franquia Time Bokan, onde ele compôs a trilha sonora de quase todas as séries, cantou vários dos temas de abertura mais populares e insert songs, e até dublou alguns personagens cômicos. Entre seus créditos está Yattodetaman, onde Takao Yotsuji e Yu Yamamoto também trabalharam.

E foi assim - com um diretor que não queria fazer animes de mecha, um roteirista ávido por criar algo próprio e um músico genial com liberdade para romper seus limites, apoiados por um estúdio de médio calibre e uma fabricante de brinquedos desesperada por um sucesso - que nasceu uma das séries de mecha mais marcantes dos anos 70.

O Ciclone Galáctico

A Trilogia J9 não nasceu como uma trilogia, ou mesmo como uma franquia. Embora exista um elo narrativo que una as três séries, que se passam em um mesmo universo com séculos de diferença entre cada obra, as três séries são relativamente independentes, e podem ser assistidas fora de ordem. O verdadeiro elo que une as três obras está nos temas, nas inspirações e nas mentes criativas por trás delas.

Abertura de Bryger

Um exemplo desses temas está no nome. Ginga Senpuu Bryger (1981) ("Bryger, o Ciclone Galáctico" em tradução livre) carrega vários temas recorrentes da trilogia. Ele contém um fenômeno meteorológico no título - ciclone - assim como suas sequências viriam a conter Ventania e Furacão. O nome do robô principal também contém um certo simbolismo. Bryger vem de burai (無頼, patife, malfeitor), indicando que não é uma série sobre heróis justiceiros enfrentando o mal - é talvez o primeiro anime de mechas estrelado por anti-heróis, pessoas de caráter duvidoso e morais escusas. O título da série também é um símbolo da parceria entre Takao Yotsuji, que deu a ideia do nome do robô, e Yu Yamamoto, que sugeriu o antetítulo pomposo.

Bryger se passa no futuro, e conta a história de um quarteto de mercenários que moram no cinturão de asteroides que circunda Júpiter, mais especificamente no setor 9 do distrito West J - daí a origem do nome, pelo menos dentro do universo (em entrevistas, Yu Yamamoto confessou que o nome veio do SL-J9, um tocador de Betamax da Sony que ele queria muito, mas não tinha dinheiro pra comprar.) Recrutados e liderados pelo reservado e sisudo Isaac Godinov, o grupo topa qualquer missão por dinheiro, incluindo assassinatos e roubos, mas seguem um estrito código de honra de nunca causar mal a inocentes. Compõem o time Jotaro Kido, vulgo Blaster Kid, o pistoleiro do time que não erra um tiro; Steven "Speedy" Bowie, um exímio motorista que venceu a famosa corrida de Le Mans de Sol; e Angel Omachi, uma mulher independente a especialista em explosivos do grupo.

No elenco de apoio temos Pancho Poncho, um velho mutreteiro que arranja a maioria dos clientes do J9 (e sempre tira uma casquinha como comissão); os irmãos Sin e Mei, que foram praticamente adotados por Isaac e colaboram na operação da base; e o chefe de polícia Macarone Spaghettino, sempre tentando pegar a gangue do J9 no pulo para prender os meliantes, ajudado por seu subordinado Gratin.

Da esquerda pra direita: no topo, Isaac e Kid; embaixo, Omachi e Bowie

Se a descrição do quarteto principal te lembrou de alguma coisa, provavelmente não é coincidência. Em 1981, Lupin the III já era um sucesso consolidado, sua segunda série de TV acabara há menos de um ano e o Castelo de Cagliostro (1979) havia arrecadado mais de 600 milhões de ienes na bilheteria japonesa. A inspiração do bando de ladrões não parou apenas na descrição - há relatos de que o design dos personagens foi especificamente encomendado para seguir a linha com os de Lupin the III. Outra das inspirações de Yu Yamamoto é a franquia Hissatsu, uma recorrente série live-action no Japão sobre assassinos de aluguel e foras-da-lei que fazem justiça com as próprias mãos, com dezenas de séries, filmes e especiais para TV.

O design de Kid, Bowie, Isaac e Omachi lembram tanto o trabalho do mangaká Monkey Punch que muitos sites de fãs acabam creditando o autor pelos designs de personagem, mas ele não teve nada a ver com a produção. Eles são obra de Kazuo Komatsubara, um animador de longa data da Toei Animation que foi o responsável pelo design de personagens de diversas adaptações dos mangás de Go Nagai, e que pela primeira vez tinha liberdade para criar personagens do zero. Komatsubara também se tornaria outro membro recorrente da equipe de produção da Trilogia J9, concebendo os personagens das outras duas séries da trilogia.

Khamen Khamen, Kid e Omachi, ilustrados por Kazuo Komatsubara

Imediatamente, Bryger se destacou das demais séries de mecha. Seus personagens são adultos que roubam e matam, brigam e flertam, bebem e fumam. Ainda que a série seja dominada pelas cenas de ação e pelos momentos de bom humor, há momentos sérios de drama, onde traumas são explorados e dilemas são discutidos. Os antagonistas da primeira metade da série são as Connections, máfias locais que dominam determinados planetas do Sistema Solar e que entram em conflito umas com as outras. A equipe J9 muitas vezes é pega nesse fogo cruzado, e obrigada a se aliar com um dos lados para sobreviver e derrotar o outro.

Na reta final, uma nova ameaça surge na forma de Khamen Khamen, líder de uma estranha seita religiosa com temas egípcios chamada Núbia. Ele começa a eliminar as diversas Connections uma a uma, concentrando poder em suas mãos para realizar seu ambicioso plano: explodir Júpiter, criando dezenas de novos planetas capazes de sustentar vida humana, e permitir que a humanidade se expanda muito além dos limites do Sistema Solar. (E não, Khamen Khamen não é Char Aznable.) Enquanto a primeira metade da série contém uma série de aventuras independentes que exploram o passado dos protagonistas, a segunda metade é uma tensa trama que culmina numa corrida contra o tempo para impedir os planos malignos de Khamen Khamen e salvar toda a humanidade.

Tema musical de Khamen Khamen, com a narração exclusiva da versão de LP

Dando voz ao quinteto principal temos Kaneto Shiozawa como Blaster Kid, Kazuyuki Sogabe como Isaac Godinov, Katsuji Mori como Steven Bowie, Jouji Yanami como Pancho Poncho e Yoko Asagami como Angel Omachi. Blaster Kid seja posicionado como o "Lupin" do time, todo o quarteto principal acaba recebendo atenção por igual... Coisa que, segundo Yu Yamamoto em seu blog, não agradou muito Kaneto Shiozawa, que esperava que Bryger fosse ser sua grande oportunidade de despontar como protagonista.

Mas, eventualmente, o clima meio rock n' roll da produção acabou acalmando o rapaz. Por ser uma empresa nova, o ambiente era bem mais descontraído, as ambições eram maiores e o companheirismo era mais profundo. As equipes saíam pra beber após as gravações, combinavam viagens juntos, saíam pra pescar. Em mais de uma ocasião, o próprio diretor Takao Yotsuji descreveu seu trabalho no estúdio como um "hobby". Esse clima, aliado à decepcionante qualidade da animação, meio que motivou os dubladores a ir além em suas atuações e carregar a série nas costas. Isso se nota no entrosamento e no improviso da dublagem de Bryger - as conversas soam muito mais naturais, com aquela intimidade única de velhos amigos. O carisma inegável de todo o elenco principal fez desses cinco atores o coração da trilogia inteira, trazendo-os de volta nas edições seguintes da série. Uma das marcas registradas da franquia J9 inteira é o "yey" - uma exclamação que representa a união e o companheirismo do time, geralmente acompanhada de polegares pra cima, e que diz-se ter sido criado pelo diretor Takao Yotsuji para resumir frases longas num sentimento simples, nascido da necessidade de cortar longos pedaços de diálogo na hora da gravação.

Omachi e Kid mandam um de seus inúmeros "yey"

Uma das histórias mais populares do seriado representa bem o que tornou Bryger tão marcante. No episódio duplo Carnival no Kaze (27-28), Angel Omachi está carente, mas sabe que não vai encontrar o que procura no time J9. Afinal, Bowie e Kid são imaturos demais, e Isaac é muito frio e distante para ser um par em potencial. O time J9 é contratado para descobrir quem está matando executivos da indústria fonográfica durante um festival musical, e Angel parte em uma missão de reconhecimento. Após um tiroteio com bandidos, ela acaba sendo resgatada por um homem muito charmoso que cuida dos ferimentos dela. Rola uma química entre os dois, e eles dormem juntos numa cena bastante explícita e delicada. Mais tarde, obviamente descobre-se que o homem charmoso é na verdade o assassino responsável pelas mortes, e Angel Omachi se vê num mato sem cachorro, obrigado a escolher entre seu amor e sua missão, enquanto o rock n' roll do festival toca ao fundo.

(Este episódio foi tão marcante que, em uma das várias fontes que eu consultei para criar este artigo, a webmaster da fanpage pede encarecidamente ao público para parar de lhe pedir cópias do episódio em questão. "Sou uma mãe de família e não tenho tempo pra essas coisas! Aluga o DVD!")

A música que toca ao longo do episódio, Taiyou no Kora (Filhos do Sol), foi escrita por Yu Yamamoto, composta por Masayuki Yamamoto e cantada por Yukio Yamagata, um cantor em ascensão que havia se mudado para Tóquio há pouco e era um dos dois vocalistas da banda TUSH, responsáveis pela abertura de Yattodetaman (quem diria!). Além de Taiyou no Kora, ele canta também os temas Hoshikuzu no Lullaby (A Canção de Ninar da Poeira Estelar), uma balada com forte inspiração da banda Queen, e ABAYO FLY BYE, o encerramento do último episódio e decerto a mais marcante canção de Bryger inteiro. É bastante seguro afirmar que a voz de Yukio Yamagata representa tudo que a Trilogia J9 quer ser - agressiva, rouca e energética, com um jeitão de Lemmy Kilmister - e não é nenhuma surpresa que Yukio Yamagata se tornaria outro dos pilares da trilogia J9 nas obras seguintes.

ABAYO FLY BYE, com narração de Jotaro Kido/Kaneto Shiozawa

Já os temas de abertura e encerramento foram interpretados pelo excelente Isao Taira, que também cantou as aberturas de Ideon (1980) e Daiohja (1981). Mesmo com o tom mais tradicional da música e do cantor, a abertura de Bryger já inovava no instrumental, e é a primeira abertura de um anime de mecha a contar com um solo de guitarra. Outro elemento marcante da abertura foi a sugestão do diretor Takao Yotsuji de colocar uma breve narração, com o intuito de dar o tom de todo o seriado, assim como fez em Tansar 5. Nela, o narrador Hidekatsu Shibata (hoje mais conhecido como King Bradley de Fullmetal Alchemist) introduz a série com a seguinte frase: "Nas sombras do cintilar das estrelas do céu noturno, ecoa uma sinistra gargalhada, enchendo de lágrimas os olhos de pessoas por planetas de toda a galáxia. Bryger, o Ciclone Galáctico - é só chamar que ele vem na hora!"

Se eu ainda não toquei no assunto do mecha titular da série, é porque francamente ele importa muito pouco, mesmo. Desenhado por Yuichi Higuchi, outro membro recorrente das produções da Kokusai Eigasha de agora em diante, a base do mecha é o carro Bry-Thunder, que contém um dispositivo capaz de fazê-lo aumentar de tamanho ao agregar matéria de outra dimensão. Assim, Bry-Thunder pode se transformar em Bry-Star, uma nave espacial, ou em Bryger, um robô gigante. Ele não tem golpes especiais empolgantes (eventualmente ele ganha uma espada bem chinfrim) e tem pouquíssimo destaque, geralmente aparecendo nos 3 minutos finais da série. Os robôs dos vilões são genéricos e esquecíveis. Pelo menos, serviu para que a Takatoku fizesse um modelo transformável em sua linha de brinquedos Z-Gokin!

Um exemplar conservado do modelo de Bryger da Takatoku

Em questão de animação, Bryger também não é grande coisa. Apesar da intrincada abertura animada pelo lendário Yoshinori Kanada, o resto do episódio continuava a ter a mesma qualidade inconsistente das outras obras da Kokusai Eigasha, e visualmente a obra arrisca pouco e não tenta impressionar. Mas o que a série peca em talento, ela transborda em carisma, e você aprende a relevar os pequenos defeitos e coisas assim da série simplesmente porque todo o resto é bom demais.

O resultado geral foi positivo, tanto em venda de produtos quanto em audiência. A Takatoku Toys, patrocinadora de Bryger, atribuiu à série um aumento de 150% nas vendas dos bonecos de suas outras franquias, como Goshogun e Yattodetaman, e o diretor Takao Yotsuji ganhou a fama de "alguém que consegue vender brinquedos de robôs, mesmo sem mostrar eles direito no anime". O robô tinha tão pouca importância para a equipe que, durante a produção do LP da trilha sonora da série, a capa chegou a ser reprovada por não conter o mecha titular - ela era ilustrada apenas com os membros do J9.

A capa reprovada do LP em questão, ilustrada por Kazuo Komatsubara

Em especial, Bryger fez bastante sucesso com o público feminino, que comparecia nos estúdios de gravação em peso para conhecer os dubladores e a equipe, sem dúvida encantadas com o charme do bad boys do J9. Há registros de doujinshis (obras amadoras) de Bryger datados do começo dos anos 80, escritos por autoras mulheres. Vários dos fansites japoneses que existem até hoje são mantidos por mulheres, e seus guestbooks estão cheios de declarações apaixonadas de senhoras nostálgicas. Tudo isso foi uma grande surpresa para o diretor Takao Yotsuji, que nunca achou que a série fosse fazer sucesso com a mulherada, e tomou várias decisões de design baseado nos gostos do seu filho pequeno, como fazer o Bryger se transformar em um carro porque seu filho gostava de carros.

Proceed J9 nº 3, doujinshi yaoi de Bryger vendido na Comiket de 1983

Entressafra

Com o sucesso relativo de Bryger, Shigeo Tsubota percebeu que tinha encontrado um nicho para se firmar, e imediatamente iniciou a conceitualização de uma nova obra de mechas. Mas sem saber se a Takatoku Toys realmente estaria interessada, ele enviou o mesmo projeto também para a Clover, uma outra empresa de brinquedos que é mais conhecida por ter patrocinado Gundam 0079, e por ter cancelado a série de TV antes de seu final devido às baixas vendas de produtos. A Clover, que já patrocinava Honey Honey e ainda trabalharia com a Kokusai Eigasha em outras obras, topou a ideia... E a Takatoku Toys também. Então a Kokusai Eigasha começou a trabalhar em duas obras de mecha em paralelo, produzindo a sequência de Bryger para a Takatoku, e uma nova obra com a Clover.

Abertura de Acrobunch

Makyou Densetsu Acrobunch (1982) estreou durante a exibição inicial de Bryger, contando a história de uma família de arqueólogos que viaja o mundo explorando mistérios, a bordo de uma nave que serve tanto como mecha de combate quanto casa. A série é notável por ter sido a primeira série da Kokusai Eigasha a ser produzida totalmente in-house, sem depender da Toei Animation... ou pelo menos essa era a ideia, porque a Toei acabou assumindo parte da produção em certo ponto.

Boa parte da equipe de Bryger retorna aqui. A série foi concebida e roteirizada por Yu Yamamoto, com Takao Yotsuji atuando na direção - este optou por usar um pseudônimo para permitir que seu colega Yu Yamamoto pudesse brilhar um pouco mais. O tema de abertura, cantado por Yukio Yamagata, conta com outra sequência de abertura deslumbrante de Yoshinori Kanada. No elenco de vez, o destaque é a estreia de Shigeru Nakahara, um jovem ator de teatro que decidiu tentar a sorte como seiyuu após um convite do diretor Yotsuji, e que viria a se tornar amplamente conhecido por seus papeis de Androide 17 em Dragon Ball Z (1989) e Yoko Kurama em Yu Yu Hakusho (1992).

Infelizmente, a série não é grande coisa. Os problemas na produção são óbvios, com falas ausentes, sequências estáticas e pouca ousadia. A sequência de encerramento é bastante emblemática, ficando pronta a tempo apenas do episódio 5 - e mesmo o aprimoramento da versão final não é muito notável. Os personagens também são mais rasos e menos carismáticos que Bryger. Por serem uma família, todos os membros possuem um passado em comum, o que impede que os roteiristas lancem mão de dramas familiares e passados dramáticos surpreendentes para a criação de conflitos.

Vídeo comemorativo do SBT sobre Honey Honey

A segunda obra é provavelmente bem mais conhecida do publico brasileiro. Substituindo Wakakusa no Yon Shimai em seu slot de programação voltado ao público feminino, a Kokusai Eigasha produziu Honey Honey no Suteki na Bouken (1981), uma adaptação do mangá shoujo homônimo de Hideko Mizuno, publicado na revista Ribbon da Shueisha em 1966. A série foi exibida entre 1987 a 1991 no SBT com o nome Honey Honey - embora popularmente seja conhecida pelo nome adaptado da protagonista, Favos de Mel - e foi um dos maiores sucessos de anime da história do canal. A emissora chegou a fazer um especial comemorativo em 2018, que vale a pena assistir.

Honey Honey acabou alguns meses antes do fim da exibição de Bryger. Engatilhado para substituir a série estava Ochamegami Monogatari Korokoro Pollon (1982), ou Little Pollon, adaptação do mangá de Hideo Azuma, um prolífico e premiado autor que é considerado o "pai do lolicon", tanto por ser uma das bases da estética moe contemporânea quando por ser um dos editores do Cybele, o primeiro doujin lolicon, que foi publicado na Comiket 10 de dezembro de 1978. O anime conta a história de Pollon, filha do deus Apolo, e sua busca para se tornar uma deusa bela e poderosa.

Little Pollon foi produzido pela mesma equipe principal de Bryger: Takao Yotsuji como diretor, Yu Yamamoto como roteirista-chefe e Masayuki Yamamoto na trilha sonora. Por estar ocupado com esta obra e também com Acrobunch, Takao Yotsuji teve um envolvimento bem mais limitado na segunda série J9.

A Ventania Galáctica

A reta final de Bryger é uma montanha russa de emoções. O plano de Khamen Khamen envolve explodir Júpiter em dezenas de planetas menores, garantindo que os humanos tenham mais espaço para colonizar e possam expandir seu potencial ao máximo. Surpreendendo expectativas, os heróis do J9 não conseguem impedir o plano, mas elaboram um esquema improvisado para impedir que o planeta Terra seja destruído no choque. Com um final relativamente feliz, eles decidem partir numa jornada sem volta para os confins do universo, com o intuito de ajudar exploradores a colonizar galáxias distantes. Seria muito fácil simplesmente escrever novas aventuras de Isaac, Kid, Bowie e Angel pelo espaço, encontrando raças alienígenas e tramando planos, mas a equipe decidiu seguir numa linha diferente.

Ginga Reppu Baxinger (1982) se passa no sistema solar, 600 anos após os eventos finais de Bryger. Com o caos gerado pelas ações de Khamen Khamen, o Sistema Solar reverteu para uma espécie de feudalismo, com o poder centralizado na Terra, na figura do Imperador do Domestic Bakuufu (algo como Xogunato Doméstico). Vendo que forças revolucionárias ameaçam destruir a tênue estabilidade política, um grupo de guerreiros se inspira nas lendas heroicas do J9 original e decide formar um segundo J9 - a Tropa da Ventania Galáctica - tornando-se uma força paramilitar que atua em nome do imperador, cujo trunfo é um robô esmagadoramente poderoso chamado Baxinger.

Abertura de Baxinger

Alguns já devem ter percebido pela descrição, mas enquanto as inspirações de Bryger são Lupin e a série Hissatsu, Baxinger mergulha fundo no imaginário do Shinsengumi, uma polícia militar histórica que defendeu o xogunato Tokugawa entre 1863 e 1869. Como eu havia comentado, a trilogia J9 é uma trilogia de paralelos. A própria raíz do nome Baxinger, bakushin, significa "vassalo do xogunato". Os protagonistas de Baxinger não são apenas um grupo de meia dúzia de heróis em divertidas peripécias pelo espaço, mas uma verdadeira tropa militar de centenas de guerreiros. Enquanto os episódios de Bryger tratavam de roubos e de assassinatos, Baxinger toca em tramas políticas, dramas de hierarquia militar e discussões sobre herança e sucessão.

As tropas do novo J9 são comandadas por Don Condor (dublado por Kan Tokumaru), um homem idealista, carismático e de bom coração. Seu braço-direito é o vice-comandante Schutecken Radcliffe (Kazuyuki Sogabe), um homem pé-no-chão, rígido, sem papas na língua e extremamente leal. Schutecken é o responsável por comandar os capitães que lideram os diversos pelotões - dentre eles, está Shiro Mahoroba (Kaneto Shiozawa), um jovem impulsivo, corajoso e o melhor espadachim do grupo inteiro. Estes três personagens representam neste universo as figuras históricas de Isami Kondo, Toshizo Hijikata e Soji Okita, e vários dos acontecimentos reais acabam sendo refletidos no anime.

Complementando o time temos Lyla Minelli (Yoko Asagami), uma corajosa capitã que ganhou a alcunha de "Borboleta Imortal"; Samanosuke Dodi (Katsuji Mori), um ronin indolente que ganha a vida com pequenos assassinatos; Jean-Jacques Johnny (Joji Yanami), um trambiqueiro com incríveis contatos que atende pelo nome de 3-J; e os irmãos Fang Fang Lee e Jacky Lee (Kazumi Amemiya e Kyouko Tonguu), duas crianças especialistas em infiltração e sabotagem.

No alto: Lyla; Da esquerda pra direita: Schutecken, Don Condor, Shiro e Samanosuke

Todos os dubladores dos papeis principais eram parte do núcleo central de Bryger e estão reprisando papeis e estereótipos bastante parecidos, servindo como âncora para a mudança bastante brusca de tom entre as duas séries. A única exceção é Kan Tokumaru, que além de dar voz ao comandante das tropas, também faz as vezes de narrador inicial, abrindo cada episódio com uma frase que dá o tom perfeito da produção, invocando um mundo mais violento e perigoso, cheio de traições e perfídia, mas que no fundo ainda era o mesmo: "Você sabe quem foram os J9? Muito tempo atrás, eles causaram o maior barraco no Sistema Solar! Mas agora os tempos são outros, e se você der mole, vão te esfaquear pelas costas... Sempre foi assim, e ainda continua!" Essa imponente frase precede a icônica abertura da série, animada pelo lendário animador Shingo Araki. O nome pode não ser familiar pra você, mas o trabalho dele certamente é - entre seus créditos estão o character design e a animação das duas aberturas e encerramentos de Cavaleiros do Zodíaco.

Talvez a mudança mais brusca e confusa seja a questão do nível tecnológico das duas séries. Enquanto a maioria dos combates na série anterior envolvem pistolas laser e canhões de plasma, aqui as disputas são resolvidas com duelos de espadas... Mas ao mesmo tempo, eles guerreiam pilotando motos espaciais, capazes de decolar para a estratosfera sem nenhum outro tipo de aparato. É óbvio que essa decisão foi tomada para poder dar um sabor meio cyberchanbara à briga, e também porque ninguém que se dê ao respeito vai ficar analisando a fundo a consistência de um desenho de crianças, mas não deixam de ser detalhes que hão de alienar as audiências mais exigentes de hoje em dia.

À esquerda: soldados da Tropa da Ventania; à direita, pessoas vestidas de Shinsengumi no evento Hino Shinsengumi Matsuri. Note os detalhes das mangás do haori.

A ideia de misturar mechas com períodos históricos era relativamente nova, mas Baxinger não foi o pioneiro. Entre janeiro de 1981 e janeiro de 1982, a Sunrise produziu Saikyou Robo Daiohja (Daiohger, o Mais Forte dos Robôs, em tradução livre), uma livre adaptação da lenda do daimyo andarilho Mito Komon, que vagava incógnito pelas províncias do Japão punindo malfeitores literalmente na base da carteirada. Por outro lado, é o primeiro anime de TV que trata do tema do Shinsengumi, um tema que hoje em dia é extremamente popular e inspirou obras como Rurouni Kenshin, Gintama e Golden Kamuy. Romantizados em diversos filmes e seriados, é a primeira vez que o famoso grupo de ronins aparece animado na tela na TV, ainda que indiretamente.

Os paralelos entre Baxinger e as lendas do Shinsengumi são inúmeras. Toshizo Hijikata era conhecido como o "Vice-Comandante Demoníaco", devido à sua exacerbada rigidez; Schutecken Radcliffe é conhecido como "Schutecken de Dois Gumes", por punir aliados e inimigos com a mesma ferocidade. Soji Okita famosamente usava uma técnica que ele batizou de Mumyo-ken, ou "Lâmina sem Luz"; na reta final da série, Shiro Mahoroba fica literalmente cego, mas graças aos seus instintos de guerreiro ainda consegue brandir sua espada. Um dos grandes fatores que causaram pressão sobre o Xogunato, acarretando na criação do Shinsengumi, foi a introdução da cultura estrangeira na sociedade japonesa; em Baxinger, colonistas do espaço sideral tentam abrir canais de negócio com o Sistema Solar, advindos de planetas como Merika (EUA), Engels (Inglaterra), e Rance (França). E é claro, o desfecho: assim como sabemos que a Restauração Meiji ocorreu, o futuro dos guerreiros do novo J9 está traçado desde o primeiro episódio.

Uma rara foto de Hijikata Toshizo, vice-comandante do Shinsengumi, em meados de 1860.

Há muitas outras referências e paralelos, tornando Baxinger um prato cheio para quem domina esse momento da história. Mas apesar de se passar num universo paralelo feudal de séculos de distância, ainda há um laço unindo diretamente esta obra à sua antecessora: Khamen Khamen XVIII, um distante descendente do Khamen Khamen original de Bryger, reaparece para causar ainda mais tumulto e confusão no sistema político daquele mundo.

Em questão de trilha sonora, Baxinger provavelmente tem a melhor de todas as três séries, lotada de músicas icônicas e que são utilizadas em profusão ao longo da série - até porque é mais barato rodar uma canção por um minuto e meio do que escrever roteiros, gravar atuações e animar personagens falando. Masayuki Yamamoto retorna para comandar a trilha sonora, compondo todas as canções em parceria com Yu Yamamoto, que escreveu as letras. A abertura e vários dos temas é cantada por Yukio Yamagata, com destaque para a icônica "Ai no Riding Machine", mas é um consenso no fandom de que as melhores são "Asteroid Blues" e "My Soul Journey", cantadas pela desconhecida e irrastreável Naomi Masuda.

Asteroid Blues, encerramento de Baxinger

Em quase todos os quesitos, Baxinger é tão bom ou melhor quanto seu antecessor. As atuações são mais convincentes, O enredo intrincado, forçando o espectador a acompanhar as várias facções, planetas, alianças e traições que acontecem, pode confundir quem não está prestando atenção, mas provavelmente são mais do agrado de audiências mais modernas. Kazuyuki Sogabe ganha mais material para trabalhar, a ação é mais intensa, as músicas são excelentes, e a animação tem uma melhora bastante marginal. Inclusive, muito da performance dos dubladores se deve a Takao Yotsuji, que não dirigiu a obra, mas assumiu a direção de dublagem a partir do episódio 19, quando o antigo diretor de som teve um desentendimento com Yu Yamamoto.

O único quesito que não melhorou muito foi a animação em si, que ainda era um tanto capenga. A produção mista entre Japão e Coreia em uma época onde a internet ainda era praticamente inexistente se provava um grande desafio, com pacotes de correio com cenas inteiras atravessando o mar de um lado pro outro. O reaproveitamento de cenas inteiras é ainda mais recorrente do que em Bryger, geralmente embaladas por uma das excelentes insert songs, que acabam sendo usadas um pouco mais do que deviam. Por sorte, o grosso da narrativa se passa em salas fechadas, em discussões acaloradas ou em monólogos introspectivos silenciosos, com cenas estáticas e simples de se animar. Como já é quase uma tradição na trilogia J9, o robô titular costuma aparecer apenas no minuto final do episódio, depois que os protagonistas combinam suas motos espaciais numa única entidade.

Baxinger DX, da Takatoku Toys, capaz de combinar as motos individuais no mecha principal

O resultado disso tudo foi misto. Assim como Bryger, Baxinger não atraiu muita audiência de TV e não foi um grande sucesso de venda de bonequinhos. O fim trágico teve uma recepção mista, tida por alguns como desnecessariamente triste e cruel, e por outros como dramática e épica, e assim como o próprio enredo, não foi tão bem compreendido pelo público-alvo jovem que tentava atingir. Mas assim como Bryger, a obra ganhou um status cult e foi tema de vários doujinshis da época, com um apelo não muito diferente do de obras modernas como Touken Ranbu e Gintama, também fortemente inspiradas no Shinsengumi.

Mas apesar dos problemas financeiros que se acumulavam e da insatisfação de sua patrocinadora, a Kokusai Eigasha ainda não tinha se dado por vencida, e já começara a produção de uma terceira série J9.

Alerta de Macaco

Durante a produção de Baxinger, a Kokusai Eigasha trabalhou na produção e planejamento em outras três obras fora da trilogia J9. Uma delas era Nanako SOS (1983), outra adaptação das obras de Hideo Azuma, cuja estreia emendou com o fim de Little Pollon. Em Nanako SOS, uma jovem chamada Nanako é vítima de um experimento científico conduzido por um doutor maluco, ganhando superpoderes e perdendo a memória no processo. O doutor se oferece para ajudá-la a recuperar a memória se ela o auxiliar em sua agência de detetives. Assim como Honey Honey e Little Pollon, Nanako SOS estreava aos sábados, às 18:00, na Fuji TV, mantendo assim ininterrupto um bloco de animações estrelado por heroínas por mais de dois anos.

Abertura de Nanako SOS

Outra das produções da Kokusai Eigasha desta época é o mecha Akuu Daisakusen Srungle (1983), que chegou a vir pro Brasil como Esquadrão do Espaço ou Esquadrão Gorila, no programa do Palhaço Fosco da TV Record nos anos 1990. Nele, um esquadrão de cientistas e aventureiros é encarregado de manter a paz no espaço e impedir os ataques de uma organização do mal apropriadamente chamada de Crime. O clima da série era bem similar a Bryger, com um elenco principal formado em especialistas em tiro, explosivos, infiltração, e com o drama interpessoal toma a dianteira da narrativa, muito além das brigas do Srungle com os robôs inimigos. Estreando na TV Asahi, a série ficou um ano no ar, o que lhe deu bastante tempo para armar reviravoltas e um acontecimento marcante que marca a transição do primeiro para o segundo arco da série. Marcou época pela inusitada música da primeira abertura e pelas inúmeras referências salpicadas ao longo de seus 53 episódios.

O character design de Srungle é creditado ao famoso artista Yoshitaka Amano, mais conhecido mundialmente por ser o designer de personagens de praticamente todas as edições da série de jogos Final Fantasy. Ele já era um veterano do estúdio Tatsunoko Pro, trabalhando como designer de personagens em séries como Gatchaman (1972), Casshern (1973) e toda a franquia Time Bokan até então. Srungle foi a primeira obra que ele produziu fora da Tatsunoko Pro, e seria a única até que ex-funcionários da Tatsunoko Pro fundassem um novo estúdio chamado Pierrot, que dispensa apresentações.

A famosa primeira abertura de Srungle, feita sob medida para karaokês

Yoshitaka Amano também viria a participar do especial para TV Ai no Kiseki - Doctor Norman Monogatari, que estreou na TV Asahi na véspera do Natal de 1982. É uma das raríssimas ocasiões em que Amano trabalhou não apenas como designer de personagens mas também como diretor de animação, o responsável por revisar todos os cortes animados e garantir qualidade e consistência entre eles. A história trata de Oppenheimer, um talentoso cirurgião incapaz de superar a culpa de ter causado um acidente e a morte de uma criança, e que vive nas ruas sob o nome de Norman, com medo de ser pego pela polícia. Pouquíssima informação sobre este especial sobreviveu até os dias de hoje.

Estas três obras contaram com direção de enredo de Yu Yamamoto, mostrando como a influência e os contatos desse profissional foi essencial para a sustentação da empresa. Não é improvável que tenha sido ele o responsável por chamar Amano para os projetos, visto que já haviam trabalhado juntos em Yattodetaman e outras obras da série Time Bokan. Masayuki Yamamoto também trabalhou na trilha sonora das três obras, embora o crédito principal da trilha sonora de Nanako SOS seja de Ichiro Nitta. Mas diferentemente de Yu Yamamoto, Masayuki ainda era apenas um humano normal, e o excesso de trabalho pode explicar o fato dele ficar de fora da terceira série da franquia J9.

Srungle ST, produzido pela Clover

Srungle, assim como Acrobunch, Honey Honey e Little Pollon, foram obras patrocinadas pela fabricante de brinquedos Clover. Eram algumas das várias apostas da fabricante, que queria surfar no boom causado por Gundam e estava em busca de um novo sucesso avassalador. Infelizmente, nem Srungle e nem Aura Battler Dunbine (1983) conseguiram trazer os resultados de que a empresa precisava, e ela fechou as portas em 1983, anunciando o estouro da bolha de brinquedos que mudaria radicalmente a indústria nos anos seguintes.

O Furacão Galáctico

Após dirigir Bryger, Takao Yotsuji se ocupou de dirigir duas séries ao mesmo tempo - Acrobunch e Little Pollon - coisa que ele nunca viria a repetir no resto de sua carreira. Ele, que não se interessava por mechas, optou por usar um pseudônimo em Acrobunch e deixar todo o controle criativo nas mãos de Yu Yamamoto, aparentemente concentrando-se na jovem deusa grega. Então, quando ficou decidido que Takao Yotsuji voltaria para dirigir a série J9, ele decidiu que queria fazer do jeito dele.

Abertura de Sasuraiger

A raíz do nome Ginga Shippu Sasuraiger (1983) (Sasuraiger, o Furacão Galáctico em tradução livre) é sasurai - vagar, viajar sem destino. Assim como Bryger bebe de seriados de samurai e Baxinger se inspira nos lendários Shinsengumi, Sasuraiger também tem uma inspiração bem clara e um tanto ocidental, se comparada com as outras: o livro A Volta ao Mundo em 80 Dias.

Bruce Bernstein é um homem dotado de uma inteligência excepcional, quase como a de um computador, o que lhe rendeu o apelido de I.C. Blues (I.C. sendo a sigla de circuito integrado). Durante uma noite particularmente sortuda em um cassino ilegal, ele é confrontado pelo dono do estabelecimento - um sujeito sinistro que aparece apenas nas sombras e é conhecido como Bloody God, se você tinha alguma dúvida de que ele era o vilão. Eles firmam uma aposta: se I.C. Blues conseguir visitar todos os 50 planetas do Sistema Solar dentro de um ano solar padrão, ele dobra sua fortuna e leva o Bloody Sindicate à falência. Caso contrário, I.C. Blues perde tudo.

(50 planetas? Pois é, Khamen Khamen fez um estrago e tanto!)

Bloody God, o antagonista da série, sempre aparece envolto em sombras, sem revelar sua identidade

Infelizmente para I.C. Blues, sua inteligência espantosa não lhe previne de cair em um loophole bastante óbvio do contrato - Bloody God não precisa pagar nada se I.C. Blues estiver morto. Durante sua fuga dos tiroteios do cassino, Bruce acaba conhecendo alguns aliados de última hora e "comprando" uma locomotiva de última geração para voar pelo espaço e escapar do sindicato criminoso. Esse é o J9-III, um modelo experimental capaz de se transformar no poderoso robô Sasuraiger, e que serve como base, veículo e arma bélica, a exemplo do mecha de Acrobunch. Notando os paralelos entre seus comparsas e o lendário J9 que habitava o cinturão de asteróides, I.C. Blues decide formar o JJ9 (double-jay-nine). Juntos, eles viajam pelo universo, ajudando a quem precisa e deixando sua marca por onde passam, mais do que literalmente.

Sasuraiger volta às raízes de Bryger, com aventuras galácticas a bordo de uma nave-que-vira-robô. Apesar de ser uma brusca mudança em relação a Baxinger, a série não foi exatamente ignorada. Em um dos episódios, os JJ9 visitam o planeta Longoo, terra natal das tropas de Don Condor e Schutecken, onde os moradores trabalham para esculpir os rostos dos heróis da revolução na escarpa de um cânion, tal qual um Monte Rushmore. Em outro episódio, um dos mais hilários da série, uma trupe de teatro encena uma peça sobre a dramática morte do xogum Yurri, e os JJ9 acabam envolvidos na produção para escapar da perseguição dos malfeitores. Mas apesar de reconhecer a existência e o impacto da anacrônica segunda série, o status quo do universo está muito mais conectado com o fim de Bryger, sem sinal de motos espaciais, brigas de espada e tramas feudais.

Da esquerda pra direita: Rock, Birdy (embaixo), Blues e Beat

Como de costume, o elenco de voz principal retorna em seus novos papéis análogos, com personagens criados mais uma vez por Kazuo Komatsubara. Kazuyuki Sogabe, Kaneto Shiozawa, Katsuji Mori e Yoko Asagami interpretam Blues, Rock, Beat e Birdie, formando o núcleo duro do JJ9. Joji Yanami retorna no papel de D.D. Richman, mais uma vez fazendo as vezes do mercador escuso de bom coração, que tenta parasitar os heróis para ganhar uma grana fácil. Kan Tokumaru, o Don Condor de Baxinger, retorna como o inspetor Organ, que persegue Blues por suspeitar que ele seja o responsável por um roubo a banco de milhões de créditos. Também mantendo a tradição do elenco de apoio, temos Jimmy e Suzie, um casal de adolescentes que fazem de tudo na nave. Jimmy é descendente de japoneses, Suzie de chineses, e eles encontram no J9-III a saída perfeita para escapar de suas famílias, que não aprovam o relacionamento.

Um outro importante personagem cristaliza tudo o que a produção de J9 era na época. Em meados da série, frustrado com suas tentativas falhas de matar I.C. Blues, Bloody God resolve contratar Fluzer Gellner, um assassino profissional equipado com seu próprio mecha inteiramente dourado. Isso seria dois anos antes de Quattro e seu Hyakushiki darem as caras em Zeta Gundam (1985) mas, admitidamente, dois anos depois do nascimento do icônico e cúbico Gold Lightan (1981). Fluzer Gellner faz o tipo de assassino silencioso, que fala muito pouco e com roupas meio metidas a caubói, como um protagonista de um filme do Clint Eastwood.

Fluzer Gellner e seu VIC-5

Mas Yotsuji queria colocar pelo menos algumas falas na obra, ainda que nada constasse nos roteiros. Então ele, aproveitando que também atuava como diretor de dublagem, esperava o estúdio ficava vazio e todos os atores irem embora para gravar escondido as frases que inventava e colocar no anime sem que ninguém percebesse. Obviamente perceberam, e atores como Katsuji Mori deram uma bronca nele, mas tudo acabou bem. Esse estilo laissez-faire de produção e esse ambiente descontraído de camaradagem são o núcleo do que fazem a série J9 ser o que é.

Eem 1983, Masayuki Yamamoto já estava ocupado com dois outros projetos da Kokusai Eigasha e com Itadakiman, a iteração da série Time Bokan de 1983. Talvez por isso sua participação em Sasuraiger tenha sido tão limitada, se comparada a das outras obras J9. Masayuki Yamamoto compôs a primeira abertura e encerramento, mas os arranjos dessas canções e a trilha sonora da série ficariam a cargo de um jovem e talentoso compositor chamado Joe Hisaishi. Ele, que havia trabalhado nos filmes-compilação de Gundam 0079, trabalhou nas músicas de Sasuraiger um ano antes de se tornar o compositor de Nausicaa do Vale do Vento (1984) e ganhar renome internacional como o compositor dos filmes do Studio Ghibli. Meu destaque pessoal para a trilha sonora de Sasuraiger é a música que parece Biquini de Bolinha Amarelinha.

Joe Hisaishi curte Celly Campello; confira

Yukio Yamagata, a voz da trilogia J9, também tem uma participação bastante limitada em Sasuraiger, cantando apenas uma canção-tema de um dos episódios. A abertura e a maioria das insert songs é creditada ao cantor e compositor Ai Takano, sob o pseudônimo MOTCHIN, que chegou a lançar três singles com as canções: "Ginga Shippu Sasuraiger", "Planets Bay Road" e o dramático, sinfônico e lamentoso tema musical de Rock Anrock, "Long Goodnight". Por muito tempo considerado uma espécie de one-hit wonder dos anos 60, sua carreira ganhou novo fôlego no começo dos anos 80, e o sucesso dos singles de Sasuraiger levou Ai Takano a ser convidado para novos projetos, inclusive um bastante especial do público brasileiro: ele é também o cantor da abertura e de múltiplas canções d'O Fantástico Jaspion.

Estruturalmente, o enredo de Sasuraiger é muito conveniente para o formato episódico das séries da época. A equipe precisa visitar 50 planetas diferentes ao longo de um ano, o que dá em média um planeta por semana, e uma série que ficaria um ano no ar. A pressão de tempo cria alguns momentos bastante emocionantes, como o episódio em que os remanescentes do culto de Khamen Khamen resolvem transformar um dos planetoides em uma espaçonave rumo ao espaço sideral, e a equipe JJ9 precisa alcançá-los antes que eles se distanciem demais. Também oferece uma desculpa para visitar a terra natal dos diversos protagonistas da série e desenvolver seus passados e dilemas. O pai de Rock foi morto por uma gangue, e ele aproveita a jornada para saciar sua sede de vingança. Os pais de Birdy, separados, aparecem em dois planetas diferentes para ajudar o grupo.

Insert songs de Sasuraiger, compostas por Joe Hisaishi e escritas por Yu Yamamoto. Ai Takano, o cantor de Jaspion, canta as duas últimas canções

Então vocês podem imaginar a angústia da equipe quando foram avisados, em meados do episódio 30, de que a série acabaria no episódio 43. Nos episódios 38, 39 e 42, a equipe visita 11 planetas diferentes, ganhando tempo para fechar na medida do possível algumas histórias urgentes, como a vingança do Rock, a acusação de roubo de I.C. Blues e o embate final contra Fluzer Gellner.

O episódio final amarra apressadamente três narrativas: o resultado da aposta, com Bloody God muito honradamente admitindo a derrota; o casamento de Jimmy e Suzie e a redenção de suas famílias; e o arco do Beat, que nutre um relacionamento slowburn com a repórter que registra todos os feitos do JJ9, Petit Lotti. Ele tem um clima de "fim de festa"; a esta altura, a equipe já sabia que a série J9 não receberia uma continuação, e ninguém estava muito contente com isso. No encerramento do último episódio, Beat é visto segurando um roteiro de um tal "J9-V", indicando que uma sequência estava sendo planejada. A sequência final é uma montagem com todos os protagonistas das três séries, dando um fim bastante digno à trilogia.

Beat lê o roteiro da próxima aventura J9 que nunca se realizou

Os relatos sobre a popularidade de Sasuraiger são mistos, para dizer o mínimo. Muitos apontam para a resiliente popularidade da trilogia J9, mas é fato que a série foi cancelada antes da hora e não teve uma continuação. Parte do cancelamento se deve a outros fatores alheios à série, como a situação financeira da Kokusai Eigasha e da Takatoku Toys, a principal patrocinadora da série. A Takatoku obteve um breve respiro em 1982, com um modelo de sucesso do VF-1 Valkyrie de Super Dimensional Fortress Macross (1982), projetado em parceria com o criador da série Shoji Kawamori e capaz de se transformar perfeitamente em caça, mas dois anos já haviam se passado e eles precisavam de um novo sucesso. É possível que tenham achado melhor apostar no lançamento de uma nova franquia do que manter a história por mais três meses no ar.

Para fechar com chave de ouro, aproximadamente uma semana depois do fim de Sasuraiger, a equipe realizou o J9 Sayonara Rock Concert, um show de rock de verdade em uma casa de shows em Tóquio, reunindo os dubladores, a equipe de produção e vários dos músicos da franquia tocando as canções da série. Os breves relatos que ainda persistem na internet dão a entender que a casa ficou lotada, que o número de fãs mulheres era surpreendente, e que havia um sentimento de união e companheirismo entre os fãs.

Flyer do evento realizado em 1984, compartilhado pelo usuário @eightogata no Twitter. Masayuki Yamamoto, Yukio Yamagata, Naomi Masuda, MOTCHIN, Isao Taira e outros músicos compareceram.

Abayo Fly Bye

Sasuraiger não foi a morte da MIC, mas eles também não duraram muito mais tempo. Eles trabalharam em apenas mais três séries, duas delas logo depois do fim conjunto de Sasuraiger e Srungle, no fim de janeiro de 1984. De modo geral, essas três séries são bastante emblemáticas das ondas de mudança que vinham varrendo o mercado de animes daquela época.

Chou Kosoku Galvion (O Extremamente Superveloz Galvion, em tradução livre) (1984) representava a nova aposta de série para vender brinquedos da Takatoku. Ocupando o slot deixado por Srungle na TV Asahi, Galvion não contou com nenhuma das mentes que dominavam o criativo da Kokusai Eigasha. A obra foi dirigida por Akira Higino e escrito por Tsunehisa Ito, dois veteranos da indústria com pouquíssima experiência nos cargos principais. Dentre os nomes do elenco destaca-se Koichi Ohata, um promissor designer mecânico em sua segunda obra, que viria a despontar uns quatro ou cinco anos depois em obras como Char's Counterattack (1988) e Gunbuster (1988).

"Lonely Chaser", abertura de Chou Kosoku Galvion

No mundo de Galvion, uma bilionária decide fundar uma associação secreta de justiceiros para acabar com o crime no mundo, e ordena a produção de um poderoso mecha chamado Galvion. Quando ela se vê com problemas para encontrar pilotos para o robô, ela faz um acordo com dois detentos: pilotem o Galvion, derrotem a Shadow, ganhem anistia. Desnecessário dizer que esta é uma obra de uma estrutura muito mais tradicional, com linhas de bem e mal claramente delineadas, ainda que os dois heróis estejam cumprindo pena na cadeia. Mas isso não quer dizer que o DNA da Kokusai Eigasha tenha sumido por completo: a abertura continua sendo o grande chamariz da obra, com uma canção bastante moderna que evoca um pouquinho de Maniac, o tema principal do filme Flashdance, lançado há menos de um ano.

Seja como for, a série mal conseguiu mostrar a que veio. Em 25 de maio, no meio da exibição, a Takatoku Toys pediu falência, acarretando no cancelamento imediato da obra. Mesmo com scripts finalizados até o episódio 30 e já tendo iniciado a produção da animação do episódio 26, a série foi interrompida no episódio 22, e os produtores tiveram que incluir uma narração absurdamente acanhada de 30 segundos para amarrar algumas pontas soltas. A TV Asahi, emissora do programa, foi obrigada a exibir reprises soltas de catálogo até encontrar algo para ocupar o slot de programação.

Abertura de Soya Monogatari

No slot de Sasuraiger, entrou uma obra bastante peculiar para os padrões da Kokusai Eigasha. Escrito por Yu Yamamoto, Soya Monogatari adapta a história real do barco Soya, originalmente um cargueiro japonês vendido para os soviéticos nos anos 30, e posteriormente comprado pelo exército japonês e usado na Guerra do Pacífico. Após a guerra, graças à sua estrutura resistente a gelo, ele é escolhido para ser o barco da primeira expedição científica japonesa na Antártida, partindo em várias aventuras. Financiada pela ONG The Nippon Foundation, a obra conta em 21 episódios toda a história do barco, reunindo um elenco de talento que varia de época para época e atrai nomes famosos como Tohru Furuya, Banjo Ginga e Ichiro Nagai. Embora exibida na recém-fundada TV Tokyo (antigo Canal 12), Soya Monogatari não foi retransmitido na maioria das emissoras locais da rede, e acabou não deixando uma marca muito grande.

Ao fim de Soya Monogatari e Galvion, a Kokusai Eigasha ficaria sem nenhuma obra nova na TV pela primeira vez em três anos. Todas as fontes de patrocínio secaram, e eles tinham essencialmente voltado à estaca zero: sem dinheiro para produzir nem espaço na TV para exibir. O canto do cisne viria no fim de 1984, com a última obra do estúdio: uma adaptação do mangá Futari Daka (no Ocidente, Twin Hawks), que estava fazendo sucesso na revista Shonen Sunday da editora Shogakukan e havia até ganho o prêmio de melhor mangá shonen do Shogakukan Manga Awards de 1984. Os "dois falcões" do título do anime se referem aos dois protagonistas, ambos chamados Taka (falcão) e nascidos no mesmo dia. Taka Tojo é um motoqueiro das ruas, especialista em rachas, enquanto Taka Sawatari compete no circuito profissional de motociclismo. Um acaso do destino faz os dois se conhecerem, e seus distintos passados e personalidades os faz se tornarem rivais da pista e da vida.

Abertura de Twin Hawks. Destaque para os trechos com motociclistas de verdade

Takao Yotsuji volta para dirigir esta que seria não apenas a última série de TV da Kokusai Eigasha, como também a última série de TV que Takao Yotsuji dirigiria em sua carreira. A trilha sonora energética de Joe Hisaishi traz temas de abertura por Takanori Jinnai, o vocalista da banda punk The Rockers que viria a se tornar um ator e diretor premiado em anos vindouros. A dupla principal de personagens é perfeitamente escalada com dois dos maiores "colírios" da época: Tohru Furuya (Seiya de Saint Seiya, Amuro de Gundam 0079) faz o papel do Taka bom moço, e Kaneto Shiozawa (Blaster Kid de Bryger) faz o papel do Taka bad boy.

Originalmente exibido no horário nobre da Fuji TV (quintas, às 19:30), a série foi progressivamente movida para blocos menos importantes, um forte sinal de que não estava obtendo muito sucesso de audiência. Em junho de 1985, um cheque sem fundo inicia uma crise financeira na Kokusai Eigasha, levando o estúdio à falência e encerrando a série prematuramente, com 36 episódios.

Por Onde Andam

Shigeo Tsubota (foto atual em conta oficial no Twitter em 2021)

Com o fechamento da Kokusai Eigasha em 1985, Shigeo Tsubota largou a indústria de animação e de distribuição de videoconteúdo. A entidade jurídica da Kokusai Eigasha permanece, sendo utilizada principalmente para gerir o copyright de suas obras, mas ele e sua empresa nunca mais se envolveram em nenhuma outra produção. Em 1989, quatro anos após a falência do estúdio, Shigeo Tsubota foi eleito como "vereador" da cidade de Nemuro, em Hokkaido, e continua até hoje no cargo, sendo reeleito sucessivas vezes. Entre os partidos pelos quais ele concorreu, alguns como o Your Party (みんなの党) defendiam abertamente o fim do conteúdo imoral nos animes - o que é muito curioso, visto que Tsubota chegou a produzir duas obras de Hideo Azuma, o "pai do lolicon".

Takao Yotsuji e Yu Yamamoto continuaram trabalhando na indústria de anime, mas nunca mais ocuparam papeis de grande relevância. Yotsuji chegou a dirigir alguns OVAs (séries publicadas direto em home video), mas continua até hoje fazendo pontas como diretor de episódio ou de roteirista. Yu Yamamoto chegou a trabalhar como roteirista-chefe em algumas séries de estúdios menores, como o Musashi no Ken (1988), do Eiken, e Ashita e Free Kick (1992), da Ashi Productions, mas boa parte de sua produção pós-J9 foi como roteirista de episódios. Ele também se arriscou no ramo literário, e chegou a publicar três livros de ficção

Curiosamente, o maior projeto dos dois após o fim da Kokusai Eigasha foi conjunto, e fora da indústria de animes: em 1999 e 2001, eles foram dois dos principais responsáveis pelos roteiros dos jogos Shenmue I e Shenmue II, de Dreamcast. Esta série dirigida por Yu Suzuki revolucionou o mundo dos videogames na época, apresentando uma cidade viva, vibrante e livremente explorável, no mesmo ano em que Grand Theft Auto III estava para lançar.

Masayuki Yamamoto, por sua vez, foi se afastando progressivamente da indústria. Com o fim da série Time Bokan em setembro 1983 e da trilogia J9 em janeiro de 1984, ele decidiu perseguir outras possibilidades da carreira musical, realizando breves retornos pontuais apenas em projetos relacionados à própria série Time Bokan, como nos OVAs Royal Revival de 1993 ou nos remakes de Yatterman de 2008. Também em 1993, Masayuki Yamamoto lança o álbum "J9 ETERNAL SPECIAL", com novos arranjos de músicas populares da série e uma música original, "J9 City ni Nage Kiss", na qual Takao Yotsuji colaborou com as letras.

A carreira de Yukio Yamagata tomou rumos bem mais interessantes. Em 1984, ele lança seu primeiro álbum solo, "TWILIGHT SHADOW", incluindo a balada "Hoshikage no Lullaby" de Bryger. Entre 1984 e 1997, ele deixa a música de lado para investir em sua carreira de ator, tentando de tudo um pouco: participa de peças e musicais famosos, incluindo uma montagem de Les Miserables (1997) que ficou 3 anos em cartaz; dubla Patrick Swayze em Dirty Dancing (1987); dá voz ao personagem Torri Ares de V Gundam (1993) e a Casey Jones de Tartarugas Ninja (1987). Mas a sua carreira dá uma guinada em 1997, quando ele grava uma canção-tema para Megaranger, a iteração anual da série live-action Super Sentai, da Toei. Desde então, ele gravou canções para 9 iterações diferentes, além de ser a voz da abertura de uma de suas séries de maior sucesso: Hyakujuu Sentai Gaoranger (2001).

Abertura de Hyakujuu Sentai Gaoranger

Todos os quatro dubladores principais seguiram carreira na área, e muitos cresceram muito além. Kaneto Shiozawa, Katsuji Mori e Kazuyuki Sogabe chegaram a trabalhar juntos em obras caras ao público brasileiro, como Hokuto no Ken (nos papéis de Rei, Shuu e Huey) e Cavaleiros do Zodíaco (Mu de Áries, Mestre Santuário e Saga de Gêmeos). Yoko Asagami, que já tinha feito história com o papel de Yuki Mori em Patrulha Estelar Yamato (1974), conquistou mais um papel de peso, com a durona Saeko Nogami de City Hunter (1987). Kaneto Shiozawa teve um trágico fim em 2000, vítima de um acidente doméstico. Kazuyuki Sogabe sucumbiu a um câncer de esôfago em 2006.

O Legado do J9

É difícil descrever o impacto que a trilogia J9 teve no mundo dos animes e no gênero dos mechas. Seu brilho sempre foi ofuscado pela excelente produção da Sunrise naquela época. Yoshiyuki Tomino, o visionário por trás de Gundam, estava no auge de sua produtividade, dirigindo séries de TV ininterruptamente por 10 anos seguidos e continuamente experimentando com o gênero, seja forçando no aspecto cômico com Combat Mecha Xabungle (1982), partindo para uma mescla medieval com Aura Battler Dunbine (1983) ou fazendo a dramática e tão esperada continuação Mobile Suit Zeta Gundam (1985). Ao mesmo tempo, o veterano da indústria Ryousuke Takahashi havia estreado como diretor com o pesado drama de guerra Fang of the Sun Dougram (1981) e emendando com Armored Trooper VOTOMS (1983), uma obra-prima do gênero que levou o conceito de real robots a seu extremo.

Mas antes de todas essas obras estrearem, Bryger já estava quebrando o molde que definia o que era um anime de mecha. Seu espírito ressoava com toda uma geração juvenil que queria heróis menos almofadinhas e mais interessantes. A trilogia J9 podia não ter os melhores números de audiência ou de venda de brinquedos, e todos os fãs da série concordam que a animação é bem... simples, mas as séries estavam constantemente estampadas em capas de revistas, seus eventos musicais eram sempre lotados e a produção cultural de fãs da época é volumosa. Eles incorporavam o espírito indie da indústria, muito antes dessa palavra ter qualquer significado.

Bryger na capa da Animedia de junho de 1982

O foco musical da trilogia J9 também teve um impacto irreversível nesse mundo. Não há dúvidas de que o sucesso dessa mistura influenciou na concepção de Super-Dimensional Fortress Macross (1982), do estúdio Tatsunoko Pro, que estreou quando Baxinger já estava na metade de sua exibição inicial. Mas enquanto Macross bebe da cultura pop estabelecida e do zeitgeist formado em torno das idols, a trilogia J9 era pura contracultura e rock n' roll. Genesis Climber Mospeada (1983), também da Tatsunoko Pro, é uma segunda investida nesse blend de mechas e música, desta vez muito com uma inspiração muito mais clara na trilogia J9, chegando até mesmo a contratar o mesmo compositor de trilha sonora de Sasuraiger, Joe Hisaishi. Esse impacto cultural na relação da música e do anime foi definitivo, e não há termômetro melhor do que comparar as músicas-tema de Gundam 0079 - melancólicas, militares, cheias de metais e bumbos e cantores enka - com a voz doce de Mami Ayukawa sobre baixos e sintetizadores em Hoshizora no Believe, encerramento de Zeta Gundam.

A verdade é que a Kokusai Eigasha era uma empresa pequena de poucos recursos tentando a todo custo se fazer ouvir num mercado competitivo e inclemente, com uma atitude iconoclasta e desregrada que foi tanto o grande trunfo e diferencial deles quanto o eventual motivo de sua falência. Eles nunca jogaram na retranca. Eles nunca apostaram no caminho mais seguro. E se eles tivessem sobrevivido por mais três ou quatro anos, superando a onda de falências de fabricantes de brinquedos de alguma forma, eles certamente teriam sobrevivido por mais uma década, seja investindo no crescente número de adaptações de mangá para a TV, seja explorando o imenso nicho incipiente do home video, que estava prestes a estourar com sucessos como Gunbuster (1988).

Abertura de Gunbuster

Diferentemente de Gundam 0079, a Trilogia J9 alcançou um status cult... e permaneceu cult, sem nunca alcançar um status muito mais importante, e hoje em dia praticamente desconhecida por todos que não são aficcionados por desenhos de robô. Mas o fandom japonês persistiu, evitando que a série caísse no esquecimento. Em 2018, uma exposição com os frames originais da série foi realizada na loja Hakaba-no-Garou. Em 2009, um evento chamado Kokusai Eigasha Night reuniu Yu Yamamoto e Takao Yotsuji no palco para falar da produção da série. E desde o ano 1990, um grupo de fãs da trilogia realiza o evento anual J9 Carnival, onde eles alugam uma discoteca e promovem uma festa ao som de músicas de anime e, principalmente, de Bryger, Baxinger e Sasuraiger.

O maior contato do público ocidental com a franquia certamente foi através da série de jogos Super Robot Wars, uma franquia com mais de 50 títulos que reúne várias franquias distintas de animes de robôs em um único universo, com line-ups distintos em cada edição. Embora pouquíssimos títulos da série tenham recebido tradução oficial para inglês e outras línguas, a série é popular o bastante para que várias de suas edições mais populares recebam traduções de fã. Bryger estreou em Super Robot Wars Alpha Gaiden (PS2 - 2001), uma das edições mais populares da série, contando com dublagem de voz para todos os personagens. Baxinger e Sasuraiger só foram aparecer em Super Robot Wars GC (GameCube - 2004), que não fez tanto sucesso. Nesta edição, onde Bryger também aparece, é possível combinar os três mechas J9 num poderoso ataque unificado.

Golpes de Bryger em Super Robot Wars Alpha Gaiden

A série também inspirou uma série de homenagens, de várias partes. Em seu fã-clube, Masayuki Yamamoto escreveu um romance batizado de Galaxy Hot Air Onsenger, promovendo os benefícios de se banhar em onsens (fontes naturais de águas termais). O projeto foi popular o bastante para que o compositor publicasse duas músicas para o projeto, e até chegou a receber o aval oficial de Yu Yamamoto. A série Irresponsible Captain Tyler (1993) também incluiu uma paródia da abertura de Bryger em seu álbum de Image Songs (canções inspiradas em determinados personagens ou cenas).

Até que, em 2014, foi anunciada a produção do título Galaxy Divine Wind Jinraiger (Ginga Kamikaze Jinraiger). Com lançamento previsto para 2016, Jinraiger seria uma nova série J9, comandada por Yu Yamamoto e produzida pela GDW Project, uma empresa fundada especificamente para o projeto. Os poucos designs que chegaram a ser publicados indicavam um distanciamento dos modelos tradicionais de mecha dos anos 90. Jinraiger seria bem mais "orgânico", com cor uniforme e pontas agudas, lembrando um pouco o design do Sazabi de Char's Counterattack, ou de Guyver.

A história trataria dos perigos da energia atômica, de estratificação social, e puxaria inspiração do clássico da literatura chinesa Margem da Água, sobre 108 foras-da-lei que moram num pântano e formam um pequeno exército. Fãs ocidentais devem conhecer a obra pelo seu nome japonês, Suikoden, que inspirou uma popular série de jogos de RPG da Konami. Jinraiger era um projeto de fã para fã, encabeçado por Yu Yamamoto para devolver à comunidade. Ele iniciou um podcast regular, o Jinrai Talk, onde ele divulgava informações da produção, como novos designs de personagens e escalações pro elenco. O site oficial da produção concentrava toda essa produção, e tinha uma seção VIP paga onde era possível ver os rascunhos dos roteiros, designs dos mechas e mais.

A produção chegou até a divulgar temas musicais 100% gravados, com Yukio Yamagata nos vocais da abertura e com encerramento da cantora MIQ, famosa no mundo dos mechas por L-Gaim (1984) e Gundam 0083: Stardust Memory (1991), entre outros. A princípio, havia anunciado-se que Masayuki Yamamoto voltaria para participar da trilha sonora, mas ambas as músicas apresentadas foram compostas por Masahito Arai, outro compositor.

Abertura de Jinraiger

Iniciada em 2014, a produção foi temporariamente interrompida em 2016, devido à agenda lotada de trabalhos de Yu Yamamoto, que continuou realizando pequenos updates regulares no projeto. Em novembro de 2018, Yu Yamamoto faleceu aos 71 anos. Como o projeto não tinha bases comerciais e sua única força-motriz se fora, o GDW Project foi "suspenso por tempo indeterminado", e aos poucos apagou todos os seus traços de sua existência, como o site oficial e as contas de redes sociais. Seu enterro contou com a presença de vários dos profissionais com quem ele trabalhou ao longo dos anos, como Yu Suzuki (diretor de Shenmue), Yuji Nunokawa (fundador do estúdio Pierrot) e de seus colegas de J9 Takao Yotsuji, Yoko Asagami e Yukio Yamagata.

Coda

Não é muito agradável terminar toda essa história num ponto tão negativo, mas a verdade é que tudo começou e terminou com Yu Yamamoto. Foi ele que participou da verdadeira revolução no mundo do anime que foi Gundam 0079, foi ele que trouxe a energia e as ideias para um pequeno e corajoso estúdio de Hokkaido e abalou as estruturas da época, e foi ele que, mesmo 30 anos depois, continuava a depositar seu amor e suas energias na comunidade, na tentativa de criar algo que fizesse jus ao legado da franquia e ao carinho da comunidade. J9 tem um pouco de todos os criadores que participaram da série, mas Yu Yamamoto era o ponto de convergência de tudo. Que descanse em paz.

Yu Yamamoto (1946-2018)

Eu recentemente tive a oportunidade de conferir as três séries J9, e tudo que eu escrevi aqui vem de um apreço muito especial por esses heróis pioneiros das décadas de 70 e 80 que pavimentaram todo o caminho para a abundância de séries de anime incríveis e de alta qualidade que temos hoje. Escrever esse texto foi um dos projetos mais divertidos dos quais eu já participei, e mergulhar fundo nesse assunto que rendeu mais de 12 mil palavras me fez apreciar, entender e amar o mundo do anime ainda mais do que eu já amava, além de contemplar toda a dedicação e persistência que fandoms do mundo inteiro dedicam a seus hobbies.

Embora elas não estejam disponíveis oficialmente no Ocidente, eu torço para que elas apareçam por aqui algum dia, e recomendo do fundo do meu coração que você, leitor, confira se surgir também a oportunidade pra você.

Abayo!

Capa do álbum Anime Music Capsule, reunindo todas as canções das três séries

(Agradecimentos ao DAIGREON pelo fact-checking das séries da Kokusai Eigasha no Brasil)