Churn - ou uma breve análise/previsão sobre o mercado de SVOD dos próximos anos

Vídeo na internet não vai virar um grande serviço de TV a cabo, mas sim uma grande locadora - e isso é bom pra gente e terrível pras empresas.

Churn - ou uma breve análise/previsão sobre o mercado de SVOD dos próximos anos

(Imagem de capa: Mustafa Ali, meu wrestler sports entertainer favorito da atualidade - Divulgação: WWE)

Em sua reunião trimestral com investidores nesta última terça-feira (23), Vince McMahon, CEO da WWE, revelou alguns dados sobre o WWE Network, seu serviço de streaming que disponibiliza todo o conteúdo criado pela empresa. De acordo com o Wrestling Observer:

WWE Network closed at 1.58 million paid subscribers for the quarter, hitting 2 million on April 8th, the day after WrestleMania. The Q2 projection is 1.7 million paid. They said they had 300 million hours of content viewed last quarter.

A WWE Network é um serviço de streaming de nicho. Ela atende um público bastante específico (fãs de wrestling), tem um conteúdo 100% voltado para eles e conta como atrativos séries exclusivas da plataforma, como o NXT, tido como um dos melhores programas semanais de wrestling do mundo. Ele é um dos dez maiores serviços de SVOD do mundo, com um tamanho comparável ao da Crunchyroll, outro serviço de nicho com 2 milhões de assinantes globais. E mesmo assim, a WWE Network enfrenta um enorme desafio na questão do 'churn'.

(Retirado deste blog, que é uma boa leitura: https://www.livechatinc.com/blog/churn-rate/)

Para explicar o que é 'churn', é preciso explicar um pouco sobre o conceito de funil de compra/funil de marketing/funil de conversão. O conceito é simples: todo consumidor passa por várias etapas desde o momento em que ele é apresentado ao seu produto até o momento em que ele realiza a compra. Cada modelo de negócios possui um "funil" diferente, e esse modelo ajuda a estabelecer prioridades para cada etapa do funil. No caso de serviços de vídeo por assinatura, um possível funil (totalmente não-científico) é o seguinte:

  • Apresentação, quando o usuário em potencial é apresentado ao serviço
  • Convencimento, quando o usuário em potencial é convencido das vantagens do serviço
  • Aquisição, quando o usuário adquire o serviço
  • Fidelização, quando o usuário se torna assinante do serviço por um período indefinido de tempo
  • Monetização, quando o usuário passa a gastar mais no serviço

Cada uma dessas etapas exige técnicas diferentes e estratégias diferentes para ser otimizada. Um comercial de TV pode ajudar na apresentação e no convencimento, mas ajuda menos na parte da aquisição, que é afetada por questões técnicas (suporte a meios de pagamento, disponibilidade regional, compatibilidade de dispositivos, etc.) Com esse funil em mente, "churn" ou "churn rate" é a taxa de pessoas que adquire o serviço, mas que permanecem por um curto período de tempo. Um churn alto é terrível porque interfere demasiado no planejamento da empresa - crescimento baixo é ruim, mas determinar orçamentos sem saber quantos usuários continuarão assinando o serviço no mês seguinte é bem pior.

Imagem de divulgação de Cobra Kai, uma obra fantástica e altamente recomendada, disponível no YouTube Red

No caso da WWE Network, entre o fim do Q1 (1.58 milhões) e o Wrestlemania (2 milhões), eles ganharam 400 mil assinantes, um crescimento de 25%. Mas eles estimam que apenas 100 mil desses assinantes continuarão assinantes até o fim do Q2 (1.7 milhões). Muita gente assinou só por causa do Wrestlemania e não está muito interessada no resto. Embora seja um desafio, o churn não é um grande problema para a WWE Network porque ela ainda enxerga crescimento, e o interesse aumentado pelo maior show do ano se traduz diretamente em interesse pelos outros programas semanais, visto que são todos de um mesmo nicho.

O mesmo não pode ser dito de outros serviços de SVOD que certamente sofrerão bastante com isso. Muita gente assinou a HBO Go por causa Game of Thrones, mas muita gente vai cancelar a assinatura quando a série acabar, porque interesse por Game of Thrones não se traduz diretamente em interesse por Mandrake ou Silicon Valley. Talvez por Roma. Outro bom exemplo é o YouTube Red (que agora é YouTube Premium?), que hospeda séries um tanto díspares em qualidade e gênero, como o excelente Cobra Kai (cuja recém-lançada segunda temporada também é excelente), séries como Weird City e documentários como The Boy Band Con. E eu digo isso como alguém que assinou os dois serviços por causa de uma única série e tem total intenção de cancelar a assinatura quando terminar de assistir esses shows.

O mercado de streaming está se fragmentando. Estão surgindo novos serviços, bancados por enormes conglomerados de mídia, que tendem a bagunçar bastante o mercado nos próximos dois anos. Não é à toa que Netflix e Amazon têm investido tanto em séries originais, porque é inevitável que cada estúdio e conglomerado tenha seu próprio serviço. E com isso, muita gente teme que isso gere um novo serviço de pacotes como a TV a cabo, onde você é obrigado a pagar vários serviços para ter acesso a um acervo variado de conteúdo.

Mas, ao contrário disso, eu acredito que o mercado vai acabar mudando de mentalidade. Da mesma forma que a Netflix alterou nossa visão de entretenimento ao oferecer um serviço único com assinatura mensal fixa para assistir qualquer coisa on demand, o público vai aos poucos migrar para uma visão de ticket de cinema a la carte: eles vão assinar determinados serviços apenas pelo tempo necessário para assistir o que querem, cancelando após seu uso, e mantendo um ou outro serviço assinado por conveniência. Ao invés de TV a cabo, teremos tickets de cinema - e o churn vai aumentar consideravelmente em todos os serviços.

E a coisa engraçada do churn é que só tem um único jeito bom de aumentar a fidelização de um cliente: oferecendo conteúdo novo e relevante com regularidade. Nesse sentido, serviços de nicho como a Crunchyroll ou a WWE Network levam vantagem porque todo o conteúdo que eles oferecem com regularidade já é relevante para o público deles. Por outro lado, qualquer serviço mais abrangente vai ter dificuldade em atender os gostos de todo mundo, o tempo todo. Você também pode aumentar a fidelização encaixando o serviço num pacote de terceiros, por exemplo: muita gente no Brasil é fidelizado ao Deezer e nem percebe. Mas isso não resolve a longo prazo, porque não é interessante repartir todo o seu lucro com um terceiro se você pode conquistar o cliente diretamente.

Dados recentes sobre a Netflix. Na ordem, temos a dívida a longo prazo em 2018 (10.31 bi USD), o patrimônio líquido (5.70 bi USD), e a razão entre os dois - a dívida é 80% maior que o patrimônio líquido. Para referência, a receita da Netflix em 2018 foi de 15.7 bi USD. Fonte: https://www.macrotrends.net/stocks/charts/NFLX/netflix/debt-equity-ratio

A Netflix tenta resolver isso com uma linha de produção de conteúdo, guiada pelos dados de visualização e pelos algoritmos da empresa, que cria mais conteúdo ligado àquilo que as pessoas estão assistindo - note por exemplo a explosão de séries sobre narcotráfico que vieram na onda de Narcos. De certa forma, é uma profecia autorrealizada que "molda" os gostos do público: se você só dá o que eles querem assistir, e eles só assistem o que você quer lhes dar, você abre caminho para que outras empresas criem projetos genuinamente criativos que conquiste o coração delas. Mas funciona pra Netflix, então ela deve saber o que faz.

Já para outras empresas menores de SVOD (ou seja, todas as outras), a solução vai ser se fundir e se agregar. É inevitável, porque dado o orçamento limitado do usuário e os preços fixos e altos dos serviços, a fragmentação do mercado não se traduz em fragmentação do orçamento. Eu não posso deixar de pagar 30 reais pra Netflix e passar a pagar 15 pra Netflix e 15 pra Disney+. A fragmentação do mercado se traduz em duas coisas: aumento de churn (até onde o usuário pode pagar) e aumento de pirataria (quando o usuário já não pode/quer mais pagar.)

Então anote aí: vivemos numa bolha crescente de serviços onde todo mundo acha que pode replicar o sucesso da Netflix com sua fatia horizontal de catálogo e tecnologia duvidosa. Netflix, por sua vez, se afunda em dívidas para produzir conteúdo original programaticamente determinado que só não mostra sinais de cansaço porque é mais conveniente assistir a primeira recomendação meia-boca que o Netflix te indica do que assistir um filme na TV a cabo começado do meio e cheio de propagandas. Serviços de nicho vão sobreviver, a menos que eles sejam absorvidos pelos serviços grandes para complementar seus catálogos desapontadores.

Você concorda? Discorda? Deixe seu comentário sobre a situação logo abaixo e participe da discussão! No próximo post, que já está sendo escrito, eu vou voltar a falar de dois dos meus assuntos favoritos: animes e estatística.